O Mercosul frente à ALCA
Maria
Luisa Mendonça
O
Mercosul é uma união aduaneira entre Brasil,
Argentina, Uruguai e Paraguai, e tem como países associados
o Chile e a Bolívia. Apesar de existir um projeto de
integração comercial entre esses países,
que inclui a abertura de fronteiras não só para
mercadorias e serviços, mas também para os trabalhadores,
o Mercosul é hoje um acordo comercial incompleto, que
ainda depende da definição de uma Tarifa Externa
Comum (TEC).
Na medida em que as negociações sobre a ALCA
(Área de Livre Comércio das Américas)
se intensificam, crescem as incertezas em relação
ao Mercosul e a pressão dos Estados Unidos para esvaziar
esse acordo. Incorporar o Mercosul à ALCA é
um projeto estratégico para o governo norte-americano,
pois seus países membros representam 42% da população
latino-americana e mais da metade do PIB da América
Latina.
Os Estados Unidos têm utilizado diversas táticas
para garantir a implementação da ALCA o quanto
antes. Primeiramente, através das pressões para
antecipar o final das negociações da ALCA de
2005 para 2003. Essa proposta foi apresentada pelos Estados
Unidos e pelo Chile na 6a. Reunião de Ministros de
Comércio em Buenos Aires, nos dias 5 e 6 de abril.
Caso os governos latino-americanos concordassem em antecipar
as negociações, a administração
de George W. Bush estaria em melhores condições
de conseguir apoio do Congresso para aprovar o projeto de
lei chamado Trade Promotion Authority (TPA), conhecido anteriormente
como fast-track, ou "via rápida". Esse projeto
determina que os acordos comerciais devem ser aprovados ou
rejeitados como um todo, sem a possibilidade de apresentação
de emendas pelos parlamentares. Apesar das pressões
dos Estados Unidos, a proposta de antecipação
das negociações da ALCA foi rejeitada na reunião
ministerial em Buenos Aires. A data de conclusão das
negociações foi marcada para janeiro de 2005
e a implementação da ALCA está prevista
para dezembro de 2005.
Outra tática utilizada pelos Estados Unidos contra
o Mercosul tem sido a busca de negociações bilaterais
com a Argentina, Chile e Uruguai. O agravamento da crise econômica
na Argentina contribuiu com esse cenário. Além
de anunciar uma possível negociação bilateral
da Argentina com os Estados Unidos, o Ministro da Economia
Domingo Cavallo tem criticado a política monetária
brasileira. Dia 6 de abril, durante um seminário no
Banco Central, Cavallo acusou o Brasil de "especular
contra modelo cambial argentino", que estabelece um sistema
de conversibilidade entre o peso e o dólar.
No mesmo dia, o Ministro de Relações Exteriores
do Brasil, Celso Lafer, declarou que a ALCA não é
inevitável e que deve ser equilibrada para "atender
aos interesses nacionais". Apesar de exercer um papel
fundamental contra as pressões dos Estados Unidos em
minar o Mercosul, o governo brasileiro chegou a negociar um
acordo sigiloso com o governo norte-americano, que inclui
a presidência conjunta dos dois países na Comissão
de Negociações da ALCA em 2002. Esse tipo de
atitude demonstra uma tendência histórica dos
países latinoamericanos, que priorizam as relações
com o colonizador, em detrimento das relações
regionais.
As principais críticas à ALCA referem-se justamente
ao poder de dominação dos Estados Unidos na
América Latina, a começar por seu Produto Interno
Bruto (PIB), que representa 71% de todo o continente. Além
da dimensão econômica, as disparidades entre
Estados Unidos e os países latinoamericanos englobam
as escalas de produção, as diferenças
tecnológicas, de infra-estrutura e o poder militar.
Ao aceitar a ALCA, os países latinoamericanos serão
obrigados a cumprir as determinações da Organização
Mundial do Comércio (OMC) sobre acordos comerciais,
o que significaria adotar tarifa zero para 85% de seus produtos,
em um prazo de 10 a 15 anos. Hoje, a tarifa média no
Brasil é de 14%. Essa determinação teria
um efeito bem menor para os Estados Unidos, que já
adota uma tarifa baixa, de 2,6%, para os países do
Mercosul. Porém, o governo norte-americano possui outros
meios para impedir a entrada de produtos do Mercosul, como
no caso das importações de aço do Brasil,
que foram taxadas em 142%, como punição por
uma acusação infundada de dumping (venda de
produtos a preço de custo ou abaixo do preço
de produção).
Outra consequência prejudicial para as empresas latinoamericanas
seria a abertura da concorrência pública para
empresas estrangeiras nos setores de serviços. A ALCA
prevê também o aprofundamento da desregulamentação
financeira, através da limitação do controle
do Estado sobre investimentos externos. Em suma, a ALCA prevê
a abertura de fronteiras para mercadorias, capitais e bens
de serviço, mas não para os trabalhadores.
Outros pontos polêmicos na negociação
da ALCA incluem propriedade intelectual, principalmente em
relação à indústria farmacêutica
e à biotecnologia. As regras de proteção
de patentes previstas na ALCA são ainda mais restritas
que as da OMC. Essas regras exerceriam grande impacto, por
exemplo, no programa brasileiro de combate à AIDS.
O uso de medicamentos genéricos pelo Brasil para o
tratamento da AIDS levou a poderosa indústria farmacêutica
norte-americana, através da administração
de George W. Bush, a recorrer à OMC, apesar dos enormes
benefícios comerciais já concedidos aos Estados
Unidos. Desde 1996, quando entrou em vigor o acordo sobre
patentes na OMC, os Estados Unidos patentearam 510 medicamentos
e o Brasil patenteou 36. Nesse mesmo período, as importações
de medicamentos no Brasil passaram de US$25 milhões
para US$1,2 bilhões, o que significa um aumento de
5.000%. De 1994 a 1997, o déficit na balança
comercial brasileira, somente em relação ao
setor farmacêutico, foi de US$1bilhão.
As vantagens comerciais da ALCA para os Estados Unidos incluem
também o setor agrícola. Em relação
a esse ponto, o governo norte-americano aceita eliminar alguns
subsídios à exportação, mas insiste
em manter os subsídios internos. Aliás, de 1990
a 2000 os subsídios agrícolas nos EUA triplicaram.
O protecionismo ao setor agropecuário, tanto nos EUA
quanto no Canadá, tem afetado particularmente o Brasil.
A recente suspensão das importações de
carne do Brasil pelo Canadá, na verdade serviu como
retaliação pelo fato da EMBRAER (empresa de
aviação brasileira) ter se tornado competitiva
no mercado internacional.
Como maior economia da América Latina, o Brasil seria
o grande perdedor na eventual implementação
da ALCA, pois teria que abdicar do direito de definir sua
estratégia de desenvolvimento e de proteger sua indústria.
Isso significaria também abdicar do Mercosul, quando
83% das empresas exportadoras em São Paulo (o maior
centro industrial do país) negociam com países
da região e somente 24% têm acesso ao mercado
norte-americano. De 1994 a 1997, as exportações
do Brasil para os EUA cresceram 5.22%, enquanto as importações
cresceram 116.52%. Somente no primeiro trimestre de 2001,
o déficit na balança comercial brasileira foi
de US$676 milhões.
Esses fatos têm gerado forte oposição
à ALCA no Brasil. Alguns dos argumentos mais contundentes
têm sido expressados pelo Embaixador Samuel Pinheiro
Guimarães, Ex-Diretor do Instituto de Pesquisas de
Relações Internacionais do Itamaraty. Em entrevista
ao jornal Valor Econômico, em 2/2/2001, ele afirma que
"não há na política ou no direito
internacional nenhum processo de negociação
que tenha de ser considerado irreversível e aceito
de forma passiva e submissa pela sociedade". Ele acredita
que a ALCA e o Mercosul são incompatíveis e
defende negociações multilaterais que permitam
graduar concessões e evitar a tarifa zero.
Os efeitos da ALCA podem ser projetados se imaginarmos o aprofundamento
do modelo neoliberal, da dependência de crédito
externo, do endividamento, da especulação cambial,
da falência da indústria nacional, das perdas
na balança comercial e, consequentemente, da exclusão
social. Na verdade, os acordos comerciais ferem diversos Pactos
e Convenções internacionais de direitos humanos,
referentes, por exemplo, aos direitos dos trabalhadores, das
crianças e dos povos indígenas.
Após o período das ditaduras militares, que
se instalaram em todos os países do Mercosul nas décadas
de 60 e 70, o conceito de direitos humanos passou a incluir
direitos econômicos, sociais e culturais. As atuais
Constituições desses países contêm
princípios que subordinam atividades econômicas
privadas aos direitos sociais. Ao mesmo tempo, todos os países
do Mercosul ratificaram o Pacto Internacional sobre Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais.
As políticas neoliberais implementadas nos países
do hemisfério Sul têm gerado desemprego, exclusão
social e violência. Hoje, 36% dos latino-americanos,
ou 220 milhões de pessoas, vivem abaixo do nível
da pobreza. A política de juros altos e salários
congelados aprofunda a desigualdade social. No Brasil, 50%
da população mais pobre detém 14% da
renda e 1% dos mais ricos detêm 13% da renda do país.
Estima-se que 32 milhões de pessoas passem fome e 300
mil crianças morram de desnutrição por
ano no Brasil.
A deteriorização econômica tem gerado
maior repressão aos movimentos sociais. No Brasil,
essa repressão tem atingido principalmente o movimento
camponês, indígena, os trabalhadores do setor
público e os estudantes. Na Argentina, a crise econômica
tem causado grandes protestos. Em recente entrevista à
Folha de São Paulo, o diretor do Centro de Estudos
Sociais e Legais (CELS), Gustavo Palmieri, afirma que, "Estão
criadas todas as condições para a Argentina
entrar em um quadro de grave convulsão social, com
possibilidade de ruptura institucional". Há algumas
semanas, no Chile, milhares de pessoas saíram às
ruas para protestar contra o aumento das tarifas de transporte.
No Paraguai, o movimento camponês tem realizado grandes
manifestações, reivindicando acesso à
terra e crédito para a produção de alimentos.
A eventual implementação da ALCA significaria
o agravamento da vulnerabilidade dos países do Mercosul.
Portanto, o problema não está nas condições
ou prazos para a integração comercial. A ALCA
precisa ser rejeitada como um todo, para que os países
latinoamericanos possam defender a soberania e os direitos
de seus povos. Nesse sentido, muitas redes de organizações
sociais, como o Jubileu Sul e o Grito Continental dos Excluídos,
propõe a realização de um plebiscito
continental sobre a ALCA. Essas organizações
propõe também a implementação
da ALPA: Área Livre de Pobreza nas Américas.
Maria
Luisa Mendonça é jornalista e diretora da Rede
Social de Justiça e Direitos Humanos.
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