Mesmo com a superexploração de mão de obra indígena, o modelo monopolista tem baixa produtividade e depende de recursos públicos.

Publicação da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos

Por Maria Luisa Mendonça e Fábio T. Pitta

O estado do Mato Grosso do Sul é conhecido por sua biodiversidade e bacias hidrográficas, em uma região que abriga o Pantanal e parte do Aquífero Guarani, mas também por uma história de colonização violenta contra povos indígenas. Atualmente, empresas do chamado agronegócio expandem seu poder econômico na região, que parece uma grande fazenda, caracterizada por imensas lavouras de cana, soja e, mais recentemente, milho transgênico, além da pecuária extensiva. Tal modelo agrícola combina o monocultivo extensivo com a intensificação da mecanização e do uso de insumos químicos, e está baseado no monopólio de um punhado de empresas nacionais e estrangeiras. A concentração da terra, portanto, é acompanhada pela monopolização da produção e comercialização agrícolas.

Essa estrutura fundiária se formou entre 1915 e 1928, a partir do confinamento dos povos Guarani, Terena e Kadiweu nas chamadas Reservas, que cumprem o propósito de exploração do trabalho indígena, já que são pequenas áreas em relação às suas necessidades de subsistência. Na Reserva de Dourados, por exemplo, vivem 12 mil pessoas em 3,5 mil hectares. Em tal situação, a população indígena é obrigada a se submeter às piores condições de trabalho.

 

 

 

Atualmente, o apoio estatal para o agronegócio inclui constante rolagem de bilhões de re-ais em dívidas, incentivos fiscais, crédito a juros subsidiados e segurança de mercado, através de acordos internacionais de comércio e da retomada dos incentivos para a produção de agrocombustíveis. Essa política ganhou força a partir de 2004, quando houve uma forte queda do preço da soja no mercado internacional e grandes produtores foram salvos através do Programa Nacional de Biocombustíveis. O mesmo ocorreu com as usinas de cana – muitas estagnadas ou falidas desde a extinção do Instituto do Açúcar e do Álcool, em 1990 – que “ressuscitaram” com a injeção de novos recursos públicos para a produção de etanol. Tais medidas foram justificadas a partir da ideia dos agrocombustíveis como fonte de energia “limpa e renovável”, apesar dos diversos estudos que comprovaram os impactos ambientais desse modelo agrícola (ver o relatório Monopólio na Produção de Etanol no Brasil: a fusão Cosan-Shell: http://www.social.org.br/revistacosanshel.pdf).

Financiamento do BNDES para plantio de cana-de-áçucar em terra indígena já homologada.

 

Os incentivos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) ao se-tor incluem o fomento a lavouras canavieiras localizadas em terras indígenas reivindicadas pelos Guarani-Kaiowá e homologadas pela própria União, o que é proibido. A empresa Raízen, formada a partir da fusão da Cosan com Shell, assinou, recentemente, um Termo de Ajustamento de Conduta com o Ministério Público, por utilizar cana-de-açúcar plantada pela fazenda Nova América em terras indígenas localizadas em Caarapó, ao sul de Dourados.

A partir de 2008, com a crise econômica internacional, observa-se maior concentração de capitais na produção de agrocombustíveis, com a fusão de empresas nacionais e estrangeiras e, em particular, com a participação de petroleiras como a Shell, Petrobrás e British Petroleum (BP). A ETH, da construtora Odebrecht, é outra multinacional fotoS: maria luiSa mendonça

que atua no setor, com usinas no Mato Grosso do Sul. A expansão territorial dos monocultivos ocorre principalmente em áreas com acesso a infraestrutura, como a região Sudeste, e em regiões com vastas bacias hidrográficas, como o Cerrado. Este processo de aparente “crescimento” da economia brasileira tem como determinação a crise econômica mundial, em um momento de preponderância de capitais financeiros.

 

ESPECULAÇÃO

Os esforços do governo brasileiro para transformar o etanol em commodity, para que seja negociado nos mercados de futuro, seguem a tendência especulativa desses mercados, principalmente a partir da crise gerada pela bolha no mercado imobiliário nos Estados Unidos e Europa. Atualmente, observamos o mesmo tipo de movimento especulativo no mercado de terras no Brasil, que é acompanhado pela valorização de commodities agrícolas e minerais. Este movimento explica o processo recente de desindustrialização no Brasil, que combina o movimento especulativo de capitais ociosos no mercado financeiro com o refúgio desses capitais em recursos estratégicos como terra, água, petróleo e minério.

Segundo a Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB) a área ocupada por cana-deaçúcar aumentou de 4,8 milhões para 8,1 milhões de hectares entre 2000 e 2011. Na última safra, a expansão territorial do monocultivo de cana foi de 9,2% enquanto a produtividade cresceu somente 2%. O segmento canavieiro aponta como motivos dessa queda alguns aspectos conjunturais, ligados principalmente a fatores climáticos. Essas questões podem influir na diminuição da produtividade, entretanto essa explicação não é suficiente.

A crise financeira de 2008 trouxe mudanças significativas para a agroindústria canavieira em relação ao padrão de expansão que se delineou nos anos anteriores. Diversas usinas tomaram empréstimos baratos em dólar, aproveitando a valorização do real, para especular com derivativos cambiais. Com a reversão dessa tendência e a valorização do dólar em relação à moeda brasileira, muitas usinas quebraram. O setor somou um prejuízo de mais de 4 bilhões de reais. As empresas deixaram de investir, por exemplo, na renovação de canaviais, tratos culturais e adubação para manter a elevação dos níveis de produtividade. Por essa razão, em janeiro de 2012, o governo brasileiro liberou 4 bilhões de reais somente para a renovação dos canaviais. Além da queda na produtividade, podemos observar a internacionalização monopolista do setor, o aumento da necessidade de créditos subsidiados, a expropriação de pequenos produtores e indígenas e a consequente substituição de lavouras alimentares. As mudanças no Código Florestal fazem parte desse contexto. Portanto, a tão propagada “eficiência” do agronegócio não se sustenta, na medida em que se constata uma queda no nível de produtividade, ao mesmo tempo em que crescem pressões dos ruralistas para avançar sobre áreas de preservação ambiental. As formas de aquisição de terras para a expansão de monocultivos ocorrem através do arrendamento, com a substituição da produção de alimentos, ou do avanço da fronteira agrícola. Este processo está ligado a um movimento de capitais financeiros que geram uma bolha especulativa, causando um forte aumento no preço da terra e dos alimentos. O discurso sobre a “modernização” da produção de etanol serve também para encobrir o aumento da exploração do trabalho. A suposta “competitividade” do etanol brasileiro no mercado externo é baseada na exploração de mão-de-obra, em uma tentativa de compensar o alto índice de endividamento e inadimplência das usinas. O modelo adotado historicamente do setor, baseado no pagamento dos cortadores de cana por produção e não por hora, gera uma condição estrutural degradante para os trabalhadores. Portanto, a superexploração não ocorre de forma pontual ou isolada, mas de maneira sistemática. Com o objetivo de melhorar sua imagem junto à opinião pública, principalmente para obter acesso ao mercado externo, as empresas avançam no processo de mecanização.

 

EXPLORAÇÃO

Entretanto, nas regiões onde prevalece o corte mecanizado, pioram as condições de trabalho, pois os cortadores necessitam atingir uma cota de produtividade cada vez maior para garantir seu emprego. As empresas utilizam a mecanização como chantagem para evitar que os cortadores reivindiquem melhorias de salário e condições de trabalho. Como o pagamento é feito por produção, os trabalhadores são impelidos a cor-tar cada vez mais para tentar cumprir uma cota que cresce com a mecanização. Diversos cortadores disseram que a meta atual no Mato Grosso do Sul é de 9 toneladas de cana por dia. Aqueles que cortam menos ficam desempregados.

Além disso, os cortadores não têm acesso à transformação dos metros cortados em toneladas,

o que facilita a apropriação de seu trabalho nãopago pelas usinas e pelos chamados “gatos”, que caracterizam a figura do intermediário no aliciamento dos trabalhadores. Ou seja, a prática da terceirização continua a ocorrer, assim como o rebaixamento dos salários e o roubo no cálculo do peso da cana. Portanto, não é o “atraso” do se-tor que leva aos casos de descumprimento dos direitos trabalhistas, mas sim a própria modernização impelida pela crise do modelo produtivo. Atualmente, as usinas no Mato Grosso do Sul utilizam somente mão de obra indígena. Com o avanço da mecanização, estima-se que o corte manual tenha diminuído em 40%. Do total de aproximadamente 10 mil indígenas empregados no corte de cana até 2006, atualmente existem em torno de 6 mil . As denúncias de irregularidades na contratação, alojamento, alimentação, segurança e transporte de trabalhadores migrantes, que vinham do Nordeste, fizeram com que as usinas optassem pelo uso do trabalho indígena local. O aliciamento é feito pelos chamados “cabeçantes” ou “caciques”, que cumprem a função do “gato”, exercem um papel de liderança nas próprias aldeias e recebem uma percentagem do salário dos cortadores. Os “cabeçantes” cumprem também a função de exigir maiores níveis de produtividade dos cortadores, já que, com o crescente desemprego, apenas os mais produtivos permanecem no trabalho.

Os trabalhadores indígenas no estado iniciaram recentemente sua organização sindical junto à Central Única dos Trabalhadores (CUT). Uma de suas lideranças, o sindicalista indígena Evanildo da Silva, explica que a luta sindical combina o objetivo de “gerar maior proteção, quebrar a submissão e dependência dos trabalhadores ao setor privado e estatal, no sentido de manter a identidade indígena”. O sindicato defende a imediata demarcação das terras e o cumprimento da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que determina a proteção de comunidades tradicionais indígenas e quilombolas.

Evanildo aponta que o trabalho nos canaviais gera doenças e esgotamento físico: “Os trabalhadores se arrebentam no corte da cana e sofrem os impactos dos agrotóxicos na saúde e no meio ambiente, que se estendem no longo prazo”. Ele lembra que os indígenas historicamente têm sido explorados nas funções mais pesadas e, inclusive, construíram a infraestrutura do estado, como as ferrovias. “É comum encontrar jovens indígenas trabalhando nas fazendas com documentos falsos. Aos 17 anos, eu trabalhei no corte da cana e até hoje sinto os efeitos. O alojamento era em barracas de lona, não havia contrato e tínhamos que pagar por todo o equipamento e alimentação”, diz Evanildo.

O sindicalista explica que o preconceito contra povos indígenas varia de acordo com sua conveniência, entre a imagem colonial do “índio preguiçoso” e a ideia que permeia o discurso atual das empresas de que seriam mais “aptos” para o trabalho pesado. Uma funcionária da usina Agri-sul/CBAA, de Sidrolândia, que não quis se identificar, justifica que atualmente a empresa contrata “100% de mão de obra indígena porque eles não têm ambição”. A partir de 2009, com o avanço da mecanização, a exigência de maior produtividade tem causado acidentes frequentes como cortes, fraturas e luxações. O desemprego gera maior precarização e permite que os trabalhadores aceitem contratos temporários, de três meses,

o que desobriga as empresas de pagar indenizações ao final da safra.

 

DEGRADAÇÃO

Na região de Dourados, onde há o maior índice de conflitos por terra no estado, os indígenas que reocuparam suas áreas tradicionais e demandam a demarcação também têm que se submeter ao trabalho nas usinas. Como as aldeias estão cercadas por monocultivos, que

utilizam grande quantidade de insumos químicos, a produção de alimentos fica prejudicada pela contaminação do solo e a grande quantidade de pragas que se proliferam com o desequilíbrio ambiental causado pelas plantações vizinhas. Dessa forma, as empresas garantem disponibilidade de mão de obra nas lavouras de cana, mesmo em condições degradantes.

Reginaldo, que hoje trabalha no posto de saúde local, conta que as empresas descontam o custo com roupa, comida, água e equipamentos, como botas e garrafa térmica, do pagamento dos cortadores. Muitos jovens, menores de idade, for-jam documentos e começam a trabalhar ainda na adolescência. As doenças ocupacionais são comuns, como problemas de coluna, nos ombros, braços e mãos, assim como enfermidades nos pulmões e contaminação por tuberculose, pela exposição à poluição nas lavouras e insalubridade nos alojamentos das usinas.

Na mesma aldeia, outros indígenas relatam histórias parecidas. João conta que começou a cortar cana aos 16 anos. Saía da aldeia para o alojamento e só tinha folga a cada 45 dias. A jornada de trabalho era das 5h30 às 16h30, e o pagamento por metro cortado era de 10 centavos. Com todos os descontos de transporte, comida, remédios e equipamentos, a média do salário mensal não chegava a 400 reais, sem direito a fundo de garantia, seguro desemprego ou assistência médica. O atraso no pagamento é comum e geralmente os trabalhadores só recebem depois de entrar em greve. Nas regiões onde as queimadas foram proibidas, o corte da cana “crua” expõe os trabalhadores ao contato com cobras, escorpiões e outros insetos.

A vulnerabilidade dos indígenas, submetidos à discriminação e repressão, faz com que as empresas tenham mais facilidade para burlar problemas no registro e fiscalização dos trabalhadores. Somente no município de Dourados, o Ministério Público registrou 1.400 reclamações trabalhistas contra usinas. Recentemente, os procuradores moveram ações que demandam o pagamento do tempo que os trabalhadores levam nos itinerários para os canaviais. Apesar da obrigatoriedade jurídica, as empresas não pagam por essas horas que, somente em um desses processos, somam 350 milhões de reais. Algumas usinas chegaram a propor a troca desse direito por “auxílio funeral”. Outro tipo comum de irregularidade é o desmatamento, que as empresas escondem enterrando as árvores para evitar multas.

Para burlar as dívidas e a situação de inadimplência, muitas usinas adotam outro nome, razão social e registro jurídico, através de fusões com grandes grupos econômicos. A Agrisul/CBAA, por exemplo, declarou falência e conseguiu retomar suas atividades através de um processo de recuperação judicial. Tal status autoriza as empresas a rolar suas dívidas e multas, por descumprimento de direitos trabalhistas ou ambientais. O atraso no pagamento dos funcionários é frequente, assim como as greves organizadas pelos cortadores para receber salários. Essa estratégia das usinas funciona como cerceamento de liberdade dos trabalhadores, dada a ausência de outra forma de sobrevivência. O monopólio das melhores terras impede que outro modo de produção seja possível como solução para a exploração.

 

ABANDONO

Nos assentamentos e áreas de produção camponesa, a falta de infraestrutura básica, como habitação, água, transporte, energia, crédito e assistência técnica, muitas vezes gera dependência e submissão do trabalho nos canaviais. A população rural não-indígena é contratada geralmente para o corte mecanizado, nos tratores e colheitadeiras, onde se registram longas e extenuantes jornadas de trabalho. A falta de apoio, e consequente dificuldade em viabilizar outro tipo de modelo agrícola, favorece

o arrendamento para plantio e fornecimento de cana para as usinas, que acabam por gerar dívidas para os assentados.

Mauro mora em um dos assentamentos mais antigos da região e sempre conseguiu manter sua produção. Em 2007, foi procurado por representantes das usinas para fornecer cana, com a promessa de receber um bom retorno financeiro. Vendeu parte de seu gado para investir no plantio da cana, além de arcar com todos os gastos com insumos e colheita. Mas a usina nunca pagou pela produção e Mauro ficou com um prejuízo de 56 mil reais, além do trabalho para recuperar o solo degradado. Ele enfrenta ainda um sério problema com incêndios causados pela queima dos canaviais vizinhos, que frequentemente atingem áreas de reserva ambiental.

Em um dos assentamentos mais recentes, Pedro conta que já arrendou terra para o plantio de cana, mas também não recebeu pagamento: “Só tivemos prejuízos, gastamos com o cultivo,

o combustível e a mão de obra e não recebemos nada. Ficamos com uma dívida de 14 mil reais e como as usinas não fazem contrato, conseguem burlar a justiça”. Ele conta que já produziu mandioca, feijão, milho e trigo, mas a falta de incentivo fez com que tivesse que arrendar a terra. Sem opção, Pedro também trabalhou como tratorista na usina: “Eles não pagam hora de almoço e temos que comer dentro do trator, dirigindo. Não aceitam máquinas paradas e não podemos ir ao banheiro. Temos somente um dia de folga a cada sete dias e o contrato é de seis meses, durante a safra. É como escravidão”.

Os assentados procuram trabalho também como mecânicos no processo de moagem da cana. Joílson conta que o atraso no pagamento é frequente e que está sem receber há dois meses: “Nós vamos para a usina por necessidade, porque as condições de trabalho lá são péssimas. O salário é pouco, não recebemos adicional noturno nem insalubridade, não depositam fundo de garantia e agora estamos sem receber. Por isso fizemos greve e paramos a usina”. Outro problema relatado é a falta se segurança dos equipamentos.

 

Por exemplo, muitos tratores não têm freio e os acidentes são frequentes.

A necessidade de procurar emprego é resultado da falta de estrutura para se manter no assentamento. Depois de oito anos de acampamento para reivindicar a reforma agrária, a área foi desapropriada em 2005, mas os agricultores ainda não tiveram acesso ao crédito para produção. Romilson planta mandioca, milho, quiabo, abóbora, hortaliças e frutas, e produz leite e ovos, mas é difícil manter a produção para além da subsistência, já que a maior parte da renda fica com os atravessadores. Para reverter essa situação, seria necessário que os assentados recebessem apoio para produção, como crédito, segurança de mercado e preço, condições de acesso à infraestrutura, transporte, água e energia.

Constata-se assim que o “produto” do agronegócio não é a cana, a soja, o açúcar ou o etanol, mas uma enorme dívida financeira, social e ambiental. O papel do Brasil na conjuntura internacional explica a continuidade da ocupação violenta de regiões ricas em recursos naturais, como o Mato Grosso do Sul, com efeito devastador para a população indígena, estimada em 75 mil pessoas, e para cerca de 30 mil famílias assentadas. Essas comunidades estão cercadas por monocultivos, que avançam causando desmatamento, intoxicação por agrotóxicos, grilagem de terra e água. Com isso, aumentam as dificuldades para a produção de alimentos, gerando situações extremas de suicídios, assassinatos, fome e enfermidades entre os povos indígenas, que são obrigados a submeter seu trabalho à exploração nos canaviais.

 

Maria Luísa Mendonça é jornalista e Fábio T. Pitta é geógrafo.