PÁGINA PRINCIPAL
Pagina Principal

Relatórios


O ano de 2003 assustou pelo expressivo aumento do número de assassinatos de indígenas em todo o país. Só no mês de janeiro, primeiro mês do governo do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, cinco homicídios já haviam sido contabilizados. No fim de fevereiro, este número já chegava a nove. Até o dia 29 de março, 12 indígenas haviam sido assassinados. Em dez meses, até o fechamento deste artigo, já são 22 indígenas assassinados e um desaparecido, contra 7 em todo o ano anterior. Trata-se de um dos maiores índices de homicídio dos últimos dez anos, os quais, somados, apontam para 245 casos com 276 vítimas.

Violências e Povos Indígenas: os primeiros balanços
de um amargo 2003

Rosane Lacerda*

Ainda em novembro de 2002, o anúncio da vitória da candidatura Luiz Inácio Lula da Silva para a Presidência da República havia gerado, entre o movimento indígena e seus aliados, grandes expectativas. No bojo das mudanças pretendidas, esperava-se que o novo governo, pronta e democraticamente, anunciasse a adoção de uma política indigenista capaz de resgatar a dívida histórica da sociedade brasileira para com aqueles povos. Aguardavam-se medidas urgentes e legalmente inevitáveis como a demarcação e proteção de suas terras e riquezas naturais, e um tratamento preventivo contra as violências de que têm sido vítimas, bem como medidas eficazes no campo da impunidade.
Mal o novo governo tomou posse e o que se viu, desde então, foi a troca do compromisso histórico de demarcação das terras indígenas pela sustentação da propalada governabilidade, o que, juntamente com a falta de medidas específicas de proteção, levou ao recrudescimento das violências contra os povos indígenas. A situação foi bastante perceptível durante o ano pela aceleração de diversos conflitos em todo o país, porém chamou mais a atenção em razão do acúmulo dos casos de homicídios havidos durante o ano, o que constitui em objeto do presente levantamento.

II. 2003: um ano recorde em assassinatos

O ano de 2003 assustou pelo expressivo aumento do número de assassinatos de indígenas em todo o país. Só no mês de janeiro, primeiro mês do governo do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, cinco homicídios já haviam sido contabilizados. No fim de fevereiro, este número já chegava a nove. Até o dia 29 de março, 12 indígenas haviam sido assassinados. Em dez meses, até o fechamento deste artigo, já são 22 indígenas assassinados e um desaparecido, contra 7 em todo o ano anterior. Trata-se de um dos maiores índices de homicídio dos últimos dez anos, os quais, somados, apontam para 245 casos com 276 vítimas.

Além da grande quantidade de casos registrados no ano, tais assassinatos chamaram a atenção do país devido a certos aspectos neles presentes. À tão presente questão da disputa territorial, somaram-se este ano questões como o preconceito étnico e o desrespeito ao idoso, a omissão governamental na proteção de lideranças ameaçadas e, mais recentemente, a exploração de menores. Vejamos alguns casos de maior destaque:

· Vítima: Aldo da Silva Mota, Makuxi, 52 anos: Já na primeira semana do governo Lula, o desaparecimento e posteriormente a confirmação do assassinato de Aldo Makuxi, na T. I. Raposa / Serra do Sol, em Roraima, chamava a atenção para a possibilidade de recrudescimento da violência contra os povos indígenas no período que se iniciava. Em 2 de janeiro, Aldo havia sido chamado por um vaqueiro da fazenda Retiro, ocupada pelo vereador Francisco das Chagas Oliveira - o "Chico Tripa", para ir buscar um gado que supostamente teria entrado na fazenda, localizada no interior da Terra Indígena. Depois disso, o indígena não mais foi visto. Após buscas incessantes, os próprios Makuxi encontraram o corpo, enterrado em cova rasa nas terras da fazenda. Os laudos produzidos pelo Instituto de Medicina Legal em Roraima, surpreendentemente, apontaram para morte natural por causa indeterminada. Por pressão dos Makuxi e do Conselho Indígena de Roraima, o Ministério Público Federal (MPF) e o Ministério da Justiça determinaram o traslado do corpo para o laboratório de Antropologia Forense do IML de Brasília. Em 21 de fevereiro, o novo laudo concluiu como causa da morte hemorragia interna por traumatismo toráxico transfixiante, provocado por projétil de arma de fogo disparado de cima para baixo enquanto a vítima encontrava-se com os braços para o alto. Em 4 de agosto, o MPF ofereceu denúncia contra Elisel Sanuel Martin (vaqueiro da fazenda) e Robson Belo Gomes. A ação penal (n.º 2003.42.00.001839-9) tramita na 1.ª Vara da Justiça Federal em Boa Vista, Roraima, e tem interrogatório designado para 14 de outubro.

· Vítima: Leopoldo Crespo, Kaingang, 77 anos: Ainda em 6 de janeiro, a morte de Crespo, no Rio Grande do Sul, fazendo lembrar o assassinato de Galdino Pataxó Hã-Hã-Hãe (ocorrida em Brasília, no ano de 1997), chocava pelo preconceito racial e pelo desrespeito ao idoso indefeso. Residente na Aldeia Estiva, T. I. Guarita, município vizinho de Redentora, Crespo havia ido ao local para receber a sua aposentadoria. De madrugada, enquanto dormia numa calçada da principal avenida de Miraguaí, Rio Grande do Sul, foi assassinado por adolescentes, com chutes e pedradas. Identificados pela Polícia, os autores do assassinato, todos jovens de família humilde, foram denunciados e submetidos a júri popular em Tenente Portela, Rio Grande do Sul. Diferentemente do que ocorreu no caso Galdino Pataxó, no qual os acusados só foram a júri quatro anos após o crime, neste os réus foram julgados seis meses depois, em 27 de junho. Foram declarados culpados por homicídio duplamente qualificado, e condenados a penas de reclusão de 14 anos e oito meses (Almiro Borges Souza), e 11 anos e meio (Roberto Carlos Moiraski). Um adolescente de 15 anos, também envolvido no crime, encontra-se internado na Fundação de Atendimento Socioeducativo de Santo Ângelo, onde cumpre medida de ressocialização.

· Vítima: Marcos Verón, Guarani-Kaiowá, 72 anos: Terceiro a ser assassinado, em 13 de janeiro, o Cacique e também ancião Marcos Verón morreu após ser barbaramente espancado por liderar a retomada das terras da comunidade, na fazenda Brasília do Sul, município de Juti, a cerca de 300 quilômetros de Campo Grande, Mato Grosso do Sul. O caso levou o MPF a propor duas ações penais pela prática do crime de constrangimento ilegal: uma contra o administrador da fazenda retomada, Nivaldo Alves de Oliveira (Ação Penal n.º 2003.60.001193-3) e outra contra Estevão Romero e Carlos Roberto dos Santos (Ação Penal n.º 2003.60.02.000374-2), ambas em trâmite na 1.ª Vara da Justiça Federal em Campo Grande. A morte de Verón, os ferimentos em outros indígenas e outros fatos relacionados ao episódio são ainda objeto de inquérito na Polícia Federal (IPL n.º 2003.60.000.728-0), autuado em 24 de março. Ao todo foram indiciadas neste inquérito 23 pessoas, entre elas Nivaldo Alves de Oliveira, Jacintho Honório da Silva Filho e Orlando Paulo Mariano.

· Vítimas: José Ademilson Barbosa da Silva, Xukuru, 19 anos e Jozenilson José dos Santos, Atikum, 25 anos: foram mortos quando lutavam para defender de um atentado o Cacique Marcos Luidson de Araújo, 24 anos, filho do cacique Francisco de Assis Araújo, o Xicão, assassinado em maio de 1998. As mortes ocorreram na rodovia PE - 219, T. I. Xukuru, município de Pesqueira, Pernambuco, a 215 quilômetros do Recife, quando o veículo no qual transitavam foi obrigado a parar em frente à fazenda denominada Curral de Bois. O imóvel, antes ocupado por Abelardo Maciel, primo do ex-secretário da Receita Federal Everardo Maciel, havia, meses antes, sido ocupado à revelia das lideranças tradicionais Xukuru por um grupo de indígenas cooptados por políticos locais, que arrendavam o imóvel a não-indígenas, situação que já havia sido denunciada como potencial causadora de conflitos no local. Travando luta corporal com os agressores, as vítimas foram mortas cada uma com um tiro na cabeça, enquanto o Cacique fugia pelo mato na tentativa de se salvar dos tiros. Revoltada com o episódio, uma multidão incendiou imóveis e veículos pertencentes a indígenas e não-indígenas compreendidos como envolvidos na tentativa de assassinato do Cacique. O inquérito instaurado pela Polícia Federal foi duramente criticado pelas entidades de direitos humanos no estado de Pernambuco, em razão de privilegiar a versão da legítima defesa do acusado José Lourival Frazão, dando a entender que o Cacique Marcos seria o causador do incidente. Também tem chamado a atenção a ação penal relativa ao caso (n.º 2003.83.00.011297-6) junto à 4.ª Vara da Justiça Federal, no Recife. A denúncia oferecida pelo MPF restringe-se à pessoa de Frazão, tendo-se excluído do caso o não-índio Zequinha Vicente, autor confesso da paulada na cabeça de uma das vítimas. O Cacique Marcos, por sua vez, sequer é considerado vítima de tentativa de assassinato, mas apenas uma testemunha. Dentre estas, foram arroladas pela acusação pessoas comprometidas com o réu, por laços de amizade e parentesco, inclusive Zequinha Vicente, autor da paulada.

· Vítimas: João Batista Rodrigues, Truk'á, 38 anos e Roberto Batista Rodrigues, Truká, 34 anos: Os irmãos foram assassinados em 29 de março, a tiros de espingarda e fuzil em uma emboscada, na Ilha de Assunção, Terra Indígena Truk'á, em Cabrobó, a 606 quilômetros do Recife.

· Vítima: Sérgio Ribeiro da Cruz, Truká, 27 anos: Morto a tiros na ilha de Assunção, em 7 de junho, três meses após o assassinato dos irmãos João e Roberto Batista Rodrigues. Junto com Sérgio também foi morto Geneíldo Júnior Gonçalves Araquã, que, ao contrário do divulgado pela imprensa e pela Polícia Federal, não se tratava de indígena Truk'á, mas de um membro da família Araquã, temida na região pelo envolvimento de seus membros em prolongadas disputas e vinditas com outra família local.

Situada no Polígono da Maconha, a área Truk'á se vê direta e indiretamente envolvida em problemas relacionados à produção e ao tráfico da droga, ficando a comunidade indígena entre o fogo cruzado dos traficantes (alguns indígenas, outros, invasores) e da própria polícia. Além disso, ainda vive os transtornos dos antigos problemas pela posse da terra ainda em mãos de ocupantes não-indígenas. Apesar da evidente relação entre o narcotráfico e a agudização da violência que recai sobre o Povo Truk'á, a Polícia Federal tem insistido na hipótese de disputa interna de poder entre os grupos liderados pelos caciques Aílson dos Santos e Joaquim Pereira da Silva como causa para o aumento da violência. Devido ao clima de tensão e insegurança, famílias têm abandonado a área. Os caciques e demais lideranças têm sido sistematicamente ameaçados e a vida normal da comunidade, como freqüência escolar e assistência de saúde, tem sido interrompida. Em junho de 2003, o caso foi levado à Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH), resultando em visita ao local pelo ministro Nilmário Miranda, da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República. Até o momento não se tem uma solução em vista.

· Vítima: Orides Belino da Silva, Kaingang, 47 anos: Cacique da comunidade Kaingang, situada na T.I. Chapecó e vice-prefeito do município de Ipuaçu, oeste de Santa Catarina, Orides Belino foi assassinado com tiros de espingarda calibre 12 pelas costas, quando chegava na casa de sua companheira. O caso foi investigado pela Polícia Federal. O Ministério Público Federal ofereceu denúncia (ação penal n.º 2003.72.02.001706-2) contra Sadi Ribeiro Lemos, Avelino Ribeiro Lemos e Claudir Martins como executores do crime, e contra José Carlos Gabriel (vereador) e Valdo Correia da Silva como mandantes. À exceção do vereador Carlos Gabriel, todos se encontram presos desde o mês de maio. Em 19 de agosto de 2003 a 7.ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4.ª Região, por unanimidade, denegou habeas corpus (HC n.º 2003.04.01.030579-9) impetrado em favor do réu Sadi Ribeiro Lemos. A ação penal contra os acusados do crime tramita na 2.ª Vara da Justiça Federal em Chapecó, Santa Catarina. Em 8 de outubro os autos foram conclusos para sentença.

· Vítima: Adilson Cardoso, Kaingang, 23 anos: Adilson participava de um acampamento no município de Faxinal do Sul, Rio Grande do Sul, quando foi esfaqueado na garganta por um invasor da terra indígena, em 27 de junho, vindo a falecer em decorrência dos ferimentos. O acampamento havia sido montado em protesto pela morosidade na demarcação da terra indígena Votouro. Revoltados com a morte, os índios bloquearam duas rodovias que dão acesso à cidade de Faxinalzinho, a 460 quilômetros de Porto Alegre.

· Vítima: Joaquim Maradezurro, Xavante, 72 anos: Desaparecido desde 2 de abril de sua aldeia em Sangradouro, Mato Grosso. Devido aos conflitos pela posse e demarcação da área, acreditam os Xavante que tenha sido morto por fazendeiros da região, o que, em se confirmando, seria o terceiro caso de ancião vítima de ato de violência no decorrer de 2003. Em 9 de abril, a Funai noticiava que as roupas do índio haviam sido encontradas às margens do rio que corta a terra indígena. Dois dias depois, com base em informação de uma liderança Xavante que estava em Brasília, o órgão chegou a divulgar nota informando que um dos sobrinhos do desaparecido, Cassiano Wamo'ra, teria localizado o corpo dentro de uma manilha numa fazenda vizinha à T.I. Volta Grande e, como não conseguia carregá-lo, teria retirado suas roupas e levado à aldeia. Dizia a nota que voltando ao local no dia seguinte com outros indígenas, o corpo teria desaparecido. No mesmo dia, porém, a Administração Executiva Regional da Funai em Primavera do Leste, Mato Grosso, desmentiu a informação. O caso ainda não foi esclarecido.

· Vítima: Júnior Reis Loureiro, Kaingang, 10 anos: O caso chamou a atenção da opinião pública no país, como mais um dos cerca de oito casos de crianças desaparecidas e encontradas mortas nos últimos meses na região de Passo Fundo, Rio Grande do Sul. Júnior viera com os pais da T.I. Votouro e vendia artesanato num posto de combustível próximo à sua residência, no bairro Nossa Senhora Aparecida. Desapareceu no domingo, 14 de setembro, e seu corpo foi encontrado na manhã de 22 de setembro, às margens da RS-153, em Passo Fundo. Dados preliminares oferecidos pelo IML à 3.a Delegacia de Polícia Civil da Cohab 1 de Passo Fundo indicaram que a morte teria sido por estrangulamento. Acredita-se que o assassinato de Júnior esteja relacionado ao de outros meninos pobres ocorridos no mesmo período e região. Já são oito meninos mortos e dois desaparecidos, todos de origem humilde e que trabalhavam na rua para ajudar na manutenção de suas famílias.

· Vítima: Ademir Mendes, Kaingang, 24 anos: Enquanto o corpo do menino Kaingang era encontrado em Passo Fundo, em Palmas, Paraná, agentes indígenas de saúde que participavam de um curso de formação encontravam, na estrada que dá acesso à T.I. Palmas, o corpo do também Kaingang Ademir Mendes, 24, sobrinho do Cacique Albino Veri. Ademir foi degolado na madrugada de 21 de setembro, quando retornava para a aldeia. O jovem era uma liderança importante da comunidade e vinha sofrendo ameaças desde que participou da liderança na luta pela demarcação e pela expulsão de madeireiras da terra indígena. Apesar da suspeita da comunidade de que os assassinos sejam pessoas ligadas aos invasores da terra indígena, o caso só foi apurado pela Polícia Civil do Paraná, uma vez que a autoridade policial teria entendido tratar-se de crime isolado, sem vinculação com a disputa pela terra indígena.

III. Muito além dos assassinatos

Mas 2003 foi marcado também pela forte e articulada reação dos setores antiindígenas locais e regionais contra os movimentos de demarcação e de reocupação da posse territorial indígena. De modo geral, foram fazendeiros, empresários do agronegócio, madeireiras, garimpeiros, políticos com interesse em terras indígenas, e até mesmo certos veículos de imprensa, todos mobilizados no sentido de impedir o avanço das lutas indígenas.

Confrontos entre indígenas e fazendeiros foram registrados no Mato Grosso (onde os Xavante reivindicam a revisão de limites das terras tradicionais) e no Mato Grosso do Sul (envolvendo os Terena e Guarani-Kaiowá). Em Rondônia, graves conflitos continuaram a ocorrer devido às invasões garimpeiras e madeireiras, afetando sobretudo os povos Cinta Larga e Urueu-Uau-Uau. Em Roraima, a indefinição do Governo quanto à homologação da demarcação da T.I. Raposa/Serra do Sol continuou alimentando a campanha terrorista de fazendeiros e garimpeiros contra os índios. Na Bahia, continuou tensa ao longo do ano a situação nas áreas Pataxó Hã-Hã-Hãe e Pataxó da região de Monte Pascoal, com os índios sendo objeto de perseguições, ameaças e ordens de despejo. Em Pernambuco, o tratamento policialesco dado à questão Truk'á somado a uma visão míope da Polícia Federal, deixou a situação de violências totalmente fora de controle, tornando a vida dos índios algo insuportável. Enquanto isso, a persistência do setor empresarial em utilizar as terras Xukuru, como parte principal de empreendimento turístico, seguiu alimentando as forças antiindígenas locais no sentido de desestabilizar e até mesmo de eliminar as lideranças tradicionais que se opõem ao projeto. Em Santa Catarina, os Kaingang e Guarani foram alvos de uma intensa campanha ofensiva contra a demarcação das terras indígenas no estado, chegando a episódios como o de 4 de setembro, em Cunha Porã, onde representantes do Cimi, da Funai e lideranças indígenas convidados para uma audiência pública foram aconselhados por parlamentares estaduais a deixar imediatamente a cidade por questão de segurança.

A situação levou a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados a instituir, em outubro, uma caravana com o objetivo de percorrer diversos estados a fim de investigar de perto os focos de conflito, devendo, ao final, encaminhar relatório da situação ao Ministério da Justiça, ao Ministério Público e a entidades competentes.

Contudo, talvez o mais preocupante no decorrer do ano de 2003 tenha sido o retrocesso do poder público em temas relativos aos direitos indígenas. Foi o que ocorreu com Maria Gorete Barbosa da Silva, mãe do Xukuru José Ademilson (morto em 7 de fevereiro). A pedido do MPF em Pernambuco e da Procuradoria Federal da Funai, a indígena teve rejeitado pelo Juiz Federal da 4.ª Vara, no Recife, o seu pedido de atuação na assistência de acusação na ação penal relativa à morte de seu filho. Alegou o representante do MPF/PE no caso em que a condição de indígena da mãe da vítima tornava nula a procuração outorgada a advogados sem a assistência da Funai, invalidando assim a petição de ingresso nos autos como assistente do Ministério Público. Com isso, o juiz federal não só rejeitou a participação da mãe da vítima no processo, como determinou que fosse ela substituída pela procuradoria jurídica da Fundação Nacional do Índio.

Outro exemplo grave de retrocesso ocorreu em 26 de setembro no caso Baú, Pará, onde o representante do MPF, ante as intensas pressões dos setores contrários à demarcação da área, proporcionou, através da celebração de um Termo de Conciliação e Ajuste de Conduta, a aceitação dos Kayapó - assistidos pela Fundação Nacional do Índio - à proposta de redução da terra indígena em troca de um milhão e duzentos mil reais, algo totalmente ilegal e que fere o parágrafo 6.º do art. 231 da Constituição Federal de 1988. Este determina a nulidade de todos os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras indígenas. Com isso, em 8 de outubro, o Ministro da Justiça baixou a Portaria n.º 1.487, reduzindo os limites da área em 300 mil hectares. A partir de agora o sinal fica verde para pressões cada vez mais intensas pela redução das terras indígenas no país.

Por fim, há que se registrar o acúmulo de queixas, no decorrer do ano, relativas à atuação da Polícia Federal em terras indígenas. Sem uma preparação específica para lidar com a questão indígena, a corporação acaba tendo o seu modus operandi contaminado por uma visão preconceituosa acerca dos índios, de suas práticas culturais e de sua organização social, levando a situações de tensão que poderiam ser evitadas.

Preocupante ainda foi ao longo do ano a ausência de sinalização, por parte do Governo do Presidente Lula, de que pretenda atender à reivindicação do movimento indígena e das entidades indigenistas, de revogação do Decreto n.º 4.412/2002, que permite a instalação, em terras indígenas, de unidades militares e da Polícia Federal.

Concluindo, pela expectativa que trouxe de novos tempos pela chegada de um Governo com bandeiras históricas de compromisso com a causa indígena, e pela relutância deste mesmo governo em levar adiante tais bandeiras, o ano de 2003 pode ser considerado, no que se refere a esta causa, como o ano que ainda não começou, e que pode terminar bem antes do tempo.

* Rosane Lacerda é advogada e assessora jurídica do Cimi - Conselho Indigenista Missionário, organismo anexo à CNBB - Conferência Nacional dos Bispos do Brasil