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Relatórios


O governo rejeitou a proposta de desapropriar 36 milhões de hectares, a fim de distribuir terra para 1 milhão de famílias, a um custo de R$ 24 bilhões, alegando que não havia verba suficiente e diminuiu a meta para 400 mil famílias. Entretanto, o Ministério da Fazenda aumentou a meta do superávit primário com o FMI para além de R$56,9 bilhões.

Tendências da Conjuntura que Impedem a Reforma Agrária

* Plínio de Arruda Sampaio e **Marcelo Resende

 É lamentável que em pleno século XXI, ao ano de 2004, ainda se tenha que argumentar a importância da reforma agrária, e o que é pior, argumentar quais são as tendências da conjuntura política que efetivamente impedem sua realização.

 As pesquisas de opinião, por meio dos organismos de comunicação, já divulgaram o manifesto desejo da maioria da sociedade na realização de uma ampla e profunda reforma agrária. Uma reforma agrária que promova a redistribuição das terras, como determina a Constituição Brasileira. Ao contrário do que sugerem alguns setores, que apostam no seu isolamento e sepultamento.

 Uma reforma agrária que simplesmente promova a desconcentração da terra dos mais de 70 mil imóveis, representados em apenas 1,7% do total de 4.238,4 milhões de imóveis, ocupando 43,8 % do total da área cadastrada pelo INCRA (segundo pesquisa do professor Ariovaldo Umbelino de Oliveira-USP). Uma concentração de terra que perdura desde o período colonial. Muita terra na mão de poucos, enquanto milhares anseiam por um pedaço de chão para trabalhar.

 Uma reforma agrária que promova a democratização da terra para gerar trabalho, com investimentos menores do que na maioria das atividades econômicas existentes.  Isto é fundamental em um país que, segundo IBGE, tinha 8,537 milhões de desempregados até maio de 2003.

 Uma reforma agrária que promova a desconcentração da terra para implementar um novo e vigoroso processo de fortalecimento da agricultura camponesa, baseado na produção de alimentos saudáveis e de custo mais baixo, especialmente para um terço da população que sobrevive abaixo da linha da pobreza.

 Uma reforma agrária que promova a desconcentração da terra para fazer funcionar programas de combate à fome e à miséria, como o Fome Zero que, por enquanto, foca suas ações em programas assistencialistas. Este projeto deveria priorizar a compra direta de alimentos dos pequenos agricultores para abastecimento do mercado institucional, proporcionando uma renda direta aos produtores.

 Há também uma nítida percepção na sociedade de que a reforma agrária deveria ser acompanhada por instrumentos importantes de assistência técnica, capacitação, comercialização, crédito, infra-estrutura, de forma a melhorar substancialmente a qualidade de vida de homens e mulheres do campo e da cidade.

 São inúmeros os argumentos para promover a desconcentração da terra neste país. Mas a questão central é a necessidade de uma mudança mais profunda na estrutura agrária, da qual a reforma agrária é apenas uma parte. Portanto, deve-se centrar todos os esforços para enfrentar o latifúndio que, a rigor, vive foragido da lei maior deste país.

 O latifúndio brasileiro está apoiado em cinco séculos de colonização, escravidão, coronelismo e, atualmente, no agronegócio. Mistura-se com o trabalho escravo, com pistas de pouso para o narcotráfico, com áreas de plantio de plantas psicotrópicas, com o contrabando nas regiões fronteiriças, com assassinato de trabalhadores rurais e, mais recentemente, de fiscais do Ministério do Trabalho que investigavam casos de trabalho escravo.

 O ponto de partida para reverter esta situação deve ser a desconcentração da terra, por meio das desapropriações. Segundo o INCRA, entre 1992 e 1998, a área ocupada pelos imóveis maiores de 2.000 hectares foi ampliada em 56 milhões de hectares, o que representa três vezes mais do que os 18 milhões de hectares que o governo FHC afirma ter desapropriado durante seis anos. Ao mesmo tempo, dados do IBGE de 1995 a 1999, indicam a evasão aproximada de 4,2 milhões de pessoas do meio rural. Além da falta de apoio governamental para a pequena agricultura, a concentração da terra é também responsável pelo êxodo rural. Portanto, o nível de desconcentração da terra, por meio das desapropriações, deve ser o principal indicador para revelar o êxito de uma política agrária.

Quais são os obstáculos para uma efetiva realização da reforma agrária no Brasil?

 Seguramente, estes obstáculos não podem ser atribuídos às mais de 400 mil famílias assentadas, que resistem em seus lotes, sem apoio suficiente do poder público. O próprio governo reconhece que, em média, mais de 80% dos assentamentos não têm infra-estrutura básica (água, estrada, energia elétrica e assistência técnica). Também não se pode atribuir responsabilidade pelo insucesso da reforma agrária as 200 mil famílias que aguardam, em média, mais de seis anos (sob o sol escaldante de uma barraca de lona), a possibilidade de serem assentadas pelo programa de reforma agrária.

 Com o início do atual governo, havia uma expectativa de que uma ampla e profunda reforma agrária seria implementada. Sobremaneira pelo compromisso histórico do Partido dos Trabalhadores com esse tema, através de seus programas de governo.

 É fundamental lembrar de muitos parlamentares que, em correlações de forças muito mais adversas, conseguiram defender a reforma agrária e impedir retrocessos legislativos que pudessem fortalecer o latifúndio.  Por exemplo, durante o governo FHC, o PT ingressou com uma ação direta de inconstitucionalidade sobre a medida provisória que impede a desapropriação de terras ocupadas. Infelizmente, na atual conjuntura, não só permanece a medida provisória, como tramita na Câmara dos Deputados projetos de lei que sugerem que decisões sobre índices de produtividade, notificação de proprietários e  decretos de desapropriação passem pela aprovação do Congresso. Neste caso vale a máxima do futebol, “quem joga na retranca só leva gol”.

 Portanto, o argumento de que não há correlação de forças no Congresso para a aprovação de medidas de aperfeiçoamento da legislação agrária, ou mesmo, correção de possíveis distorções para acelerar atos administrativos do poder público, não se justifica.

 O Congresso poderia, por exemplo, apresentar projeto de lei que impedisse aos proprietários de se furtarem à notificação de vistorias, como foi o caso do latifúndio Southal, de13.222 hectares, no município de São Gabriel, no Rio Grande do Sul.  Ou mesmo apresentar projeto de lei para que o judiciário não protele mais a imissão do INCRA na posse do imóvel, após um prazo de 48 horas, a partir da comprovação do início do pagamento em Títulos da Dívida Agrária. Afinal, que prejuízo pode causar ao proprietário a imissão do INCRA na posse do imóvel desapropriado, mesmo que o valor ofertado pela autarquia seja, posteriormente, retificado pelo juiz?

 O Congresso poderia ainda apresentar projeto de lei que permita corrigir as distorções de valores abusivamente elevados das indenizações, por meio de expedientes distorcidos. A primeira distorção consiste na atualização dos títulos da dívida  agrária (TDA) por meio da Taxa Referencial de Juros (TR), acrescida de 6% ao ano, a título de juros compensatórios. Ora, o que a Constituição determina no seu artigo 184 não é a conversão do valor do imóvel em títulos financeiros de elevada e garantida rentabilidade – o que seria um prêmio ao proprietário faltoso – mas unicamente a preservação do valor real da terra. O proprietário faltoso, descumpridor da função social da propriedade, não está vendendo uma terra ao INCRA, mas sendo punido por descumprimento da lei. A Constituição só lhe dá o direito de receber o preço de mercado da terra convertido em títulos resgatáveis no tempo.

 O valor de uma terra pode variar, para baixo ou para cima, nas várias épocas de resgate dos títulos. Este é o valor que, pela Constituição, tem que ser assegurado ao proprietário expropriado.

 A segunda distorção consiste no pagamento de juros compensatórios. Até recentemente, esta taxa era de 6% ao ano. Porém, após a reedição da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN – 2332/2002), este percentual passou para 12% ao ano sobre a diferença entre o preço ofertado pelo INCRA e o preço fixado pelo juiz, a contar da data da imissão do INCRA e da data fixada pelo juiz na imissão na posse. Ora, este preceito estimula o desapropriado a protelar ao máximo a demanda, pois, dificilmente encontrará no mercado financeiro aplicação melhor e mais segura para o seu dinheiro. Este é o caso da fazenda Annoni, no Rio Grande do Sul, no qual o valor da desapropriação em abril de 1986 era equivalente a R$392 mil. Hoje, o valor da desapropriação, acrescido dos juros compensatórios, chega a R$491 milhões.

 Além das correções que se fazem necessárias na legislação agrária, também se faz necessário correções administrativas no Executivo. Afinal, por quê o executivo não promove a revisão da tabela que estabelece os índices de produtividade, datados ainda da década de 70?

 Um processo de vistoria no INCRA demora, em média, nove meses, se não houver obstáculo jurídico nenhum, o que em geral não é o caso. E normalmente as vistorias do INCRA apresentam laudos de produtividade. Entretanto, de cada dez áreas ocupadas pelos sem terra, nove apresentam características de improdutividade. O caso apresentado abaixo ilustra essa situação:

 Certa vez, no Triângulo Mineiro, um acampado questionado sobre como eles encontravam o latifúndio improdutivo, narrou da seguinte forma:

 “É fácil demais, basta olhar ao longo da estrada, reparar o pasto sujo, a cerca pendurada. Quando adentra a fazenda, logo um casarão fechado, no fundo o caseiro e sua mulher e uma renca de filhos, do lado, um curral abandonado telhado quebrado. Quando pergunta ao caseiro:

 Como o senhor vive aqui? – Eu vivo aqui tomando conta de algumas cabeças de gado para o patrão, que me deixa morar, e tudo que eu plantar neste pedaço aqui é a meia.

Quanto o senhor recebe? _ Recebo nada não!

E o patrão? _O patrão...Patrão, mora em São Paulo.”

 Essa distorção entre as avaliações dos sem terra e do INCRA revela que é necessário  rever os métodos utilizados pelo INCRA nas atuais vistorias.

 Também não faz sentido o argumento difundido pelo poder Executivo, segundo o qual o impedimento para a realização da reforma agrária reside na estrutura da máquina pública, em especial no INCRA, pelo seu sucateamento e esvaziamento. Ainda que se reconheça este problema herdado de administrações anteriores, as deficiências da máquina administrativa podem ser resolvidas com decisão política.

 Outro desafio colocado para o Executivo consiste no assentamento de famílias nos estados de maior tensão social (Rio Grande do Sul, Paraná, São Paulo, Minas Gerais, Pernambuco e Paraíba). O governo FHC diz ter assentado 600.000 famílias. Entretanto, destas, 70% se encontram nos estados da Amazônia legal e outra parte em regiões remotas do Nordeste. Nessas regiões, em função da falta de infraestrutura e da desvalorização da terra, os latifundiários muitas vezes têm interesse na desapropriação. O atual governo parece seguir a mesma lógica. Isso explica porque, das 70 mil famílias que o governo alega ter assentado até agosto de 2004, o MST diz que somente 5.440 estavam em seus acampamentos.  

 Um outro argumento difundido é de que o atual contingente de ocupação populacional entre o campo e a cidade, por ocasião do êxodo rural e “modernização” do campo, não permite mais encontrar a figura do sem terra ou famílias desempregadas no campo, e nem latifúndio improdutivo. Segundo esta visão, a mão de obra utilizada no campo é recrutada das periferias das cidades interioranas ou provenientes de migrações temporárias das regiões mais pobres do semi-árido brasileiro. 

 Essa teoria cria a impressão de que as 200 mil famílias acampadas ao longo das rodovias não passam de “desempregados agitados por uma bandeira vermelha que caiu com a queda do muro de Berlim”. Portanto, a solução seria implementar frentes de trabalho para gerar emprego e não proporcionar terra.

 Em certa medida, essa visão é acolhida dentro do próprio Executivo por ocasião da decisão de não mais fornecer periodicamente cesta básicas às famílias acampadas, pois isso representaria sua proliferação. Porém, estas famílias são vitimas do descumprimento da Constituição, que determina a desapropriação de terras que não cumprem a função social.  Não se pode crer que alguma família goste de ficar acampada somente para ganhar cestas básicas. Portanto, o direito humano fundamental à alimentação deve ser cumprido, mesmo em situações de conflito. 

 Um outro argumento apresentado é de que a reforma agrária necessite ser repensada pelo elevado custo para fixar uma família na terra. A proposta inicial do Plano Nacional da Reforma Agrária, entregue ao governo em dezembro de do ano passado, sugere a desapropriação de 36 milhões de hectares, em 4 anos, a fim de distribuir terra para 1 milhão de famílias, a um custo de R$ 24 bilhões, sendo 11 bilhões para pagamento de indenizações e R$ 13 bilhões para assentamento dos beneficiários. O governo rejeitou esta proposta, alegando que não havia verba suficiente e diminuiu a meta. Entretanto, o Ministério da Fazenda aumentou a meta do superávit primário com o FMI para além de R$56,9 bilhões. Estes recursos seriam suficientes não só para assentar 1 milhão de famílias, mas também para dotar os assentamentos existentes de água, luz, estrada e energia elétrica.

 O dinheiro que os brasileiros aplicam no exterior já supera o investimento do governo no país. A política de desregulamentação financeira foi aprofundada no governo, através de uma portaria do Banco Central que permite o envio de remessas para o exterior sem que o remetente precise se identificar. Todo o orçamento de investimentos do governo federal para este ano de 2004 não chega a R$13 bilhões. Por outro lado, o último levantamento realizado em 2003 mostra um saldo das aplicações no exterior de pessoas física e jurídica de R$240 bilhões (Estado de Minas, 4 de outubro de 2004). 

 Há também aqueles que defendem a não existência de latifúndios improdutivos no Brasil. Entretanto, segundo dados do cadastro do INCRA de 2003 (analisados pela equipe do II Plano Nacional de Reforma Agrária), baseados em declarações dos próprios proprietários, 70% dos imóveis acima de 2.000 hectares são improdutivos, representando 120 milhões de hectares, e 172 milhões de hectares são considerados como terras devolutas, ou seja, pertencentes aos estados ‘a União.

 Há ainda os que defendem a chamada “reforma agrária de mercado”, implementada atualmente no Brasil com apoio do Banco Mundial. Essa política se baseia no financiamento para aquisição de terras, no qual o proprietário recebe o pagamento ‘a vista e os sem terra contraem uma dívida de 20 anos. Esta política não promove a desconcentração da terra, concorre com recursos públicos da reforma agrária e com o instrumento da desapropriação. O Ministério Público tem recebido denuncias de irregularidades nesses projetos. Porém, nenhuma avaliação mais ampla foi apresentada pelo governo.

 E, por fim, existem aqueles que defende a manutenção da estrutura fundiária concentrada como estratégia para a expansão das atividades agrícolas de exportação ou “commodities”. Estes alegam que se constitui em ato de irresponsabilidade a desapropriação de latifúndios em áreas de hegemonia do agronegócio, ou de expansão agrícola. Entretanto, o ufanismo conjuntural sobre o agronegócio esconde as perversidades desta política, por exemplo:

 Enquanto foi destinado um montante de crédito agrícola de R$7 bilhões a agricultura familiar em 2004, o agroegócio recebeu R$39 bilhões. Em 2003, dos créditos aportados aos agricultores familiares, cerca de R$1 bilhão de reais não foram executados. Isto se dá pela inoperância ou mesmo preconceito, principalmente da administração do Banco do Brasil, para com os assentados da reforma agrária.

 Enquanto o campo se moderniza com máquinas e insumos, o maior produtor de algodão do país, o prefeito de Acreúna (GO) demitiu 2.000 empregados de suas fazendas, em maio de 2004, em conseqüência da aquisição de 18 colheitadeiras (Agência Folha, 12/09/2004).

 Como se não bastasse o montante financeiro de crédito para o agronegocio , este setor tem acesso à financiamentos de instituições financeiras multilaterais como o Banco Mundial que, através da IFC (Corporação Internacional de Finanças) aprovou, em setembro de 2004, um financiamento de US$ 30 milhões para o grupo Maggi aumentar o cultivo de soja no leste do Mato Grosso (Folha de São Paulo, de 25 de setembro de 2004).

 O atual modelo econômico influencia a condução da política agrária do governo. A imposição do superávit fiscal penaliza a reforma agrária na medida em que o governo se sentiu obrigado a reduzir a meta de assentar 1 milhão de famílias, por estar compelido pelo FMI a produzir anualmente um superávit primário equivalente a 4,25% do PIB. O governo alega falta de verbas inclusive para a emissão de títulos de áreas já desapropriadas.

 As ações governamentais têm se pautado na política de atrair o capital financeiro internacional. O governo faz grande esforço para aprovar as chamadas “PPP” - Parcerias Público Privadas. Por outro lado, não se verifica o mesmo esforço, por exemplo, para a homologação contínua da terra indígena Raposa Serra do Sol aos seus legítimos donos.

 Portanto, há uma nítida aliança da classe dominante, representada pelo capital financeiro, por transnacionais da agricultura, pelo Estado brasileiro e pelo latifúndio, para impor a hegemonia do modelo econômico. Sábia é a interpretação daqueles que entendem o provérbio chinês, no qual o mestre aponta o dedo para a lua, e seu aluno, ao invés de ver a lua, só consegue enxergar o dedo. Não ocorrerá mudança nenhuma na estrutura agrária e fundiária deste país se não houver mudança no modelo de desenvolvimento.   

*Plínio de Arruda Sampaio, advogado e economista, é presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária. Foi deputado federal pelo PT-SP (1985-1991) e consultor da FAO (organismo das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação)

** Marcelo Resende é geógrafo, ex-presidente do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e membro da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos.