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Relatórios


 PREFÁCIO

 

Observo alguns dos exemplares de Relatórios anuais da Rede Social Justiça e Direitos Humanos de anos precedentes. A Rede cumpre com as suas ações de assessoria e acompanhamento e com os seus Relatórios, um papel necessário e útil para o país no presente e para as gerações futuras. A memória das violações dos direitos humanos e os caminhos e alternativas de cada época empreendidas por tantas admiráveis organizações e por algumas pessoas são sempre úteis, convocam-nos às ações com maior competência e vigor, pois os direitos humanos não surgem espontaneamente, mas são frutos de uma construção histórica difícil, longa e nem sempre contínua.[1] Cada um de nós pode e deve participar enquanto cidadão dessa construção e sorver do passado as experiências mais ricas, adaptando-as e as enriquecendo com as novas experiências.

Agora temos mais uma publicação anual do Relatório, o Direitos Humanos no Brasil 2005. É o quinto. E, como os anteriores, traz textos de diversas organizações e pessoas da sociedade civil que labutam com os problemas urbanos e rurais de violações de direitos humanos. Por isso mesmo, por essa parceria, a organização faz parte de uma rede, ela mesma é uma rede, não age sozinha, sabe que a tarefa em prol dos direitos humanos é uma tarefa hercúlea, que exige uma ação coletiva. Isso torna o Relatório particularmente interessante. Ele é fruto de visões plurais, de fontes diversificadas – jornalistas, advogados, pesquisadores, agentes sociais, militantes dos mais diversos grupos e locais – que se complementam e enriquecem o debate. Em comum todos os que aqui escrevem se preocupam com os direitos humanos e revelam um Brasil às vezes pouco conhecido.

No Relatório tais direitos vão além das liberdades individuais e também surgem enquanto Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Infelizmente, o primeiro aspecto muitas vezes foi relegado ao segundo plano nos países socialistas e os últimos foram relegados ao segundo plano nos países capitalistas. Uns e outros são fundamentais e o Relatório está atento a ambos, mesmo se a ênfase parece se encontrar nos últimos.

Mais uma vez, o Relatório é publicado em meio a uma crise ética que atinge os partidos políticos. Aliado a tudo isso, o Governo tem dificuldades em cumprir suas próprias metas. Um dos exemplos da inoperância do Estado se manifesta nas questões relativas à Reforma Agrária. Enquanto líderes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) têm sido presos e até condenados pela justiça sob variadas acusações, o número de famílias assentadas no país é insignificante. Em novembro de 2003, o governo federal prometeu ao MST assentar 400 mil famílias. Um ano depois, o ministro Miguel Rosseto reconheceu ter assentado apenas 117 mil e, na maioria dos casos, na Amazônia Legal. De fato, ali há mais regularização de ocupações já feitas do que propriamente “ações que alterem a estrutura fundiária”.[2]  O assassinato da irmã Dorothy Stang e a lista de lideranças ameaçadas de morte nos estados do Pará e Tocantins revelam ainda a ausência do poder público para dirimir conflitos e dar respostas rápidas aos problemas que se arrastam por anos e décadas.

Um tema que tomou conta da imprensa nos últimos meses foi o plebiscito nacional a respeito do desarmamento. Mais do que a competência em marketing da chamada “turma da bala”, seu resultado revelou a insegurança das pessoas quanto à violência que invadiu as ruas e as residências. O voto “não” ao desarmamento traduz certamente parte do descontentamento e indignação das pessoas e demonstra uma crítica dura contra as políticas governamentais que têm se mostrado ineficientes no combate ao crime. O Estado não possui o controle nem a hegemonia da violência; não controla sequer parte do território nacional, como afirmou recentemente Gilberto Velho.[3] E dificultando a implementação de ações que favoreçam os direitos humanos nos aspectos econômicos, sociais e culturais, há a política que prioriza o superávit primário.

Contudo, há sinais positivos, ainda que insuficientes, de que algo pode e tem sido feito por setores do poder público como as investigações  de atividades criminais e criminosas de membros dos poderes executivo, legislativo e judiciário, as condenações de dois dos autores intelectuais do assassinato de João Canuto, as ações corajosas do Grupo Especial de Fiscalização Móvel do Ministério do Trabalho e Emprego e a chamada “lista suja” do mesmo Ministério com os nomes dos empresários envolvidos na escravidão, as ações por danos morais coletivos impetradas pelo Ministério Público do Trabalho contra empresas que usufruem a escravidão e as sentenças emitidas pela Justiça do Trabalho.

Com a crise política e as violações dos direitos humanos em seu sentido mais amplo, o país vive um risco, nesse momento, de desesperança. Houve uma expectativa frustrada, quanto às ações que poderiam ter sido implementadas pelo governo do presidente Lula, por parte da sociedade como um todo e da sociedade civil organizada e popular, principalmente aquela dos defensores dos direitos humanos.

Diante do desencanto, é hora de refletir sobre o sentido do poder. Ele, pressuposto da sociedade política, conforme a filósofa Hannah Arendt, é o resultado de nossa capacidade para “agir em concerto”. Estar no poder não significa algo individual, mas o fato de que alguém “foi empossado por um certo número de pessoas para agir em seu nome”. Se o grupo que deu sustentação e do qual provem o poder “desaparece, seu poder também se esvanece”.[4] Desencantados muitos não se identificam com o projeto político atual e não se sentem mais representados pelos que devem exercer o poder. Sem parte substancial das bases de sustentação anterior, esse poder passa por adaptações para sobreviver e terá que agir em concerto com outros interesses.

Ora, no momento em que escrevo este prefácio e reflito sobre problemas tão graves e sobre o sentido do poder, acabo de retornar de São Félix do Araguaia, no Mato Grosso. Tive ali a oportunidade de refletir a respeito da necessidade de manter acesas a fé e a esperança. De Brasília até o Mato Grosso a viagem foi longa em um vôo com diversos pousos e decolagens. As distâncias são enormes. Da janela do pequeno avião vimos muita e muita terra, grande parte devastada e se percebe a baixa densidade demográfica. Apesar disso, a região tem sido palco freqüente de conflitos fundiários e de utilização de trabalho escravo! Ali, às margens do rio Araguaia, naquela cidade pequena e bonita, mora um homem magro e miúdo, que usa sandálias de borracha, mora como os mais pobres e viaja por toda parte através de ônibus precários e inseguros. Sepulta trabalhadores, reza pelos mortos e pelos vivos, fala com sabedoria e escreve belos poemas. Ele, frágil no corpo, interpelava a ditadura brasileira, e seu nome é Pedro Casaldáliga, bispo Prelado de São Félix. Casaldáliga enfrentou ameaças de ser expulso do país, de ser preso e morto. Naqueles anos cinzas de censura à imprensa e tortura política, na delegacia de polícia de Ribeirão Cascalheira, ao tentar socorrer uma mulher que estava sendo torturada, Pedro colheu nos braços o corpo de padre João Bosco Penido Burnier, que o acompanhava. O padre foi assassinado por engano, pois o alvo era o bispo.

Estive não apenas diante de um amigo querido, mas de um homem que é um exemplo de dedicação às causas dos empobrecidos e humilhados, os “proibidos” (como ele às vezes acentua) – proibidos, pela pobreza e exploração, de viverem com dignidade, ou mesmo simplesmente de viverem. Como Pedro, podemos perceber ao longo desse Relatório, há outros corajosos defensores dos direitos humanos espalhados pelo país, mesmo se boa parte é composta por anônimos que têm convicção dos motivos de sua luta.

Hoje, o bispo de São Felix não tem mais o corpo ou a saúde de 1968, quando chegou à região. Contudo restou como antes, sua voz profética, seu amor pelo Brasil e pela “Pátria  Grande”, nossa sofrida e corajosa América Latina. Ele explica ter sempre convivido com as distâncias. E elas não significam apenas as imensas distâncias geográficas da Amazônia, mas são inclusive e principalmente aquelas da desigualdade social, do machismo e do racismo, que produzem violência e são em si mesmas violentas. Elas não são, poderíamos concluir, fruto do ocaso, de um acidente, mas são os frutos de ações públicas e privadas, ações pessoais e coletivas que se interligam.

O bispo, magro desde sempre, tem mãos que revelam os ossos e acompanham no ar, trêmulas, as palavras e o olhar, ambos firmes. Apaixonado pela causa da liberdade e da vida, ele explica que a esperança e a fé devem nos acompanhar “antes, durante e depois”. Isso é, sempre. Ou, parodiando o poeta alemão do século XVIII Lessing, poderemos repetir que o medo nos torna menores; e a esperança nos leva além de nós mesmos, de nossas sombras.[5] E há sinais positivos de persistência e coragem que vem do movimento social, como as mobilizações do MST; a discussão sobre a transposição do Rio São Francisco, a partir da greve de fome empreendida pelo bispo Luiz Flávio Cappio e tantas manifestações populares pelo país.

Que este Relatório de 2005 seja também mais que um grito. Que seja um alerta e nos una na construção continuada e teimosa de uma sociedade melhor, fraterna e justa. Que o Deus da vida que torna nosso corpo sua morada, nos auxilie a proteger e tratar como santo e sagrado os corpos de tantos que são despossuídos dos bens mais elementares, inclusive a cidadania.

  Ricardo Rezende Figueira

Padre, Coordenador do Grupo

de Pesquisa sobre Trabalho Escravo

Contemporâneo da UFRJ, diretor do

Movimento Humanos Direitos (MHuD)

e presidente do Conselho Deliberativo da

Rede Social de Justiça e Direitos Humanos

 



[1] Sobre a construção histórica dos direitos humanos veja Norberto Bobbio in A era dos direitos (Rio de Janeiro, Elvesier, 2004).

[2] Conforme carta do MST entregue ao presidente Lula em 26.10.2005.

[3] O Globo, 30.10.2005: 14, seção “O País”.

[4] Hannah Arendt in Sobre a violência, Rio de Janeiro, Relume Damará, 1994: 36-37.

[5] Hannah Arendt (in Homens em tempos sombrios, São Paulo: Cia. das Letras, 1999: 14-15) ao receber um prêmio, cita dois versos de Lessing, e faz a afirmação com outro sentido do que esse utilizado aqui.