PREFÁCIO
Observo
alguns dos exemplares de Relatórios anuais da Rede Social
Justiça e Direitos Humanos de anos precedentes. A Rede cumpre
com as suas ações de assessoria e acompanhamento e com os
seus Relatórios, um papel necessário e útil para o país no
presente e para as gerações futuras. A memória das violações
dos direitos humanos e os caminhos e alternativas de cada época
empreendidas por tantas admiráveis organizações e por
algumas pessoas são sempre úteis, convocam-nos às ações
com maior competência e vigor, pois os direitos humanos não
surgem espontaneamente, mas são frutos de uma construção
histórica difícil, longa e nem sempre contínua.
Cada um de nós pode e deve participar enquanto cidadão dessa
construção e sorver do passado as experiências mais ricas,
adaptando-as e as enriquecendo com as novas experiências.
Agora
temos mais uma publicação anual do Relatório, o Direitos
Humanos no Brasil 2005. É o quinto. E, como os
anteriores, traz textos de diversas organizações e pessoas
da sociedade civil que labutam com os problemas urbanos e
rurais de violações de direitos humanos. Por isso mesmo, por
essa parceria, a organização faz parte de uma rede, ela
mesma é uma rede, não age sozinha, sabe que a tarefa em prol
dos direitos humanos é uma tarefa hercúlea, que exige uma ação
coletiva. Isso torna o Relatório particularmente
interessante. Ele é fruto de visões plurais, de fontes
diversificadas – jornalistas, advogados, pesquisadores,
agentes sociais, militantes dos mais diversos grupos e locais
– que se complementam e enriquecem o debate. Em comum todos
os que aqui escrevem se preocupam com os direitos humanos e
revelam um Brasil às vezes pouco conhecido.
No
Relatório tais direitos vão além das liberdades individuais
e também surgem enquanto Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais. Infelizmente, o primeiro aspecto muitas vezes foi
relegado ao segundo plano nos países socialistas e os últimos
foram relegados ao segundo plano nos países capitalistas. Uns
e outros são fundamentais e o Relatório está atento a
ambos, mesmo se a ênfase parece se encontrar nos últimos.
Mais
uma vez, o Relatório é publicado em meio a uma crise ética
que atinge os partidos políticos. Aliado a tudo isso, o
Governo tem dificuldades em cumprir suas próprias metas. Um
dos exemplos da inoperância do Estado se manifesta nas questões
relativas à Reforma Agrária. Enquanto líderes do Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) têm sido presos e até
condenados pela justiça sob variadas acusações, o número
de famílias assentadas no país é insignificante. Em
novembro de 2003, o governo federal prometeu ao MST assentar
400 mil famílias. Um ano depois, o ministro Miguel Rosseto
reconheceu ter assentado apenas 117 mil e, na maioria dos
casos, na Amazônia Legal. De fato, ali há mais regularização
de ocupações já feitas do que propriamente “ações que
alterem a estrutura fundiária”.
O assassinato da irmã Dorothy Stang e a lista de
lideranças ameaçadas de morte nos estados do Pará e
Tocantins revelam ainda a ausência do poder público para
dirimir conflitos e dar respostas rápidas aos problemas que
se arrastam por anos e décadas.
Um
tema que tomou conta da imprensa nos últimos meses foi o
plebiscito nacional a respeito do desarmamento. Mais do que a
competência em marketing da chamada “turma da bala”, seu
resultado revelou a insegurança das pessoas quanto à violência
que invadiu as ruas e as residências. O voto “não” ao
desarmamento traduz certamente parte do descontentamento e
indignação das pessoas e demonstra uma crítica dura contra
as políticas governamentais que têm se mostrado ineficientes
no combate ao crime. O Estado não possui o controle nem a
hegemonia da violência; não controla sequer parte do território
nacional, como afirmou recentemente Gilberto Velho. E dificultando a
implementação de ações que favoreçam os direitos humanos
nos aspectos econômicos, sociais e culturais, há a política
que prioriza o superávit primário.
Contudo,
há sinais positivos, ainda que insuficientes, de que algo
pode e tem sido feito por setores do poder público como as
investigações de
atividades criminais e criminosas de membros dos poderes
executivo, legislativo e judiciário, as condenações de dois
dos autores intelectuais do assassinato de João Canuto, as ações
corajosas do Grupo Especial de Fiscalização Móvel do Ministério
do Trabalho e Emprego e a chamada “lista suja” do mesmo
Ministério com os nomes dos empresários envolvidos na
escravidão, as ações por danos morais coletivos impetradas
pelo Ministério Público do Trabalho contra empresas que
usufruem a escravidão e as sentenças emitidas pela Justiça
do Trabalho.
Com
a crise política e as violações dos direitos humanos em seu
sentido mais amplo, o país vive um risco, nesse momento, de
desesperança. Houve uma expectativa frustrada, quanto às ações
que poderiam ter sido implementadas pelo governo do presidente
Lula, por parte da sociedade como um todo e da sociedade civil
organizada e popular, principalmente aquela dos defensores dos
direitos humanos.
Diante
do desencanto, é hora de refletir sobre o sentido do poder.
Ele, pressuposto da sociedade política, conforme a filósofa
Hannah Arendt, é o resultado de nossa capacidade para “agir
em concerto”. Estar no poder não significa algo individual,
mas o fato de que alguém “foi empossado por um certo número
de pessoas para agir em seu nome”. Se o grupo que deu
sustentação e do qual provem o poder “desaparece, seu
poder também se esvanece”.
Desencantados muitos não se identificam com o projeto político
atual e não se sentem mais representados pelos que devem
exercer o poder. Sem parte substancial das bases de sustentação
anterior, esse poder passa por adaptações para sobreviver e
terá que agir em concerto com outros interesses.
Ora,
no momento em que escrevo este prefácio e reflito sobre
problemas tão graves e sobre o sentido do poder, acabo de
retornar de São Félix do Araguaia, no Mato Grosso. Tive ali
a oportunidade de refletir a respeito da necessidade de manter
acesas a fé e a esperança. De Brasília até o Mato Grosso a
viagem foi longa em um vôo com diversos pousos e decolagens.
As distâncias são enormes. Da janela do pequeno avião vimos
muita e muita terra, grande parte devastada e se percebe a
baixa densidade demográfica. Apesar disso, a região tem sido
palco freqüente de conflitos fundiários e de utilização de
trabalho escravo! Ali, às margens do rio Araguaia, naquela
cidade pequena e bonita, mora um homem magro e miúdo, que usa
sandálias de borracha, mora como os mais pobres e viaja por
toda parte através de ônibus precários e inseguros. Sepulta
trabalhadores, reza pelos mortos e pelos vivos, fala com
sabedoria e escreve belos poemas. Ele, frágil no corpo,
interpelava a ditadura brasileira, e seu nome é Pedro Casaldáliga,
bispo Prelado de São Félix. Casaldáliga enfrentou ameaças
de ser expulso do país, de ser preso e morto. Naqueles anos
cinzas de censura à imprensa e tortura política, na
delegacia de polícia de Ribeirão Cascalheira, ao tentar
socorrer uma mulher que estava sendo torturada, Pedro colheu
nos braços o corpo de padre João Bosco Penido Burnier, que o
acompanhava. O padre foi assassinado por engano, pois o alvo
era o bispo.
Estive
não apenas diante de um amigo querido, mas de um homem que é
um exemplo de dedicação às causas dos empobrecidos e
humilhados, os “proibidos” (como ele às vezes acentua)
– proibidos, pela pobreza e exploração, de viverem com
dignidade, ou mesmo simplesmente de viverem. Como Pedro,
podemos perceber ao longo desse Relatório, há outros
corajosos defensores dos direitos humanos espalhados pelo país,
mesmo se boa parte é composta por anônimos que têm convicção
dos motivos de sua luta.
Hoje,
o bispo de São Felix não tem mais o corpo ou a saúde de
1968, quando chegou à região. Contudo restou como antes, sua
voz profética, seu amor pelo Brasil e pela “Pátria
Grande”, nossa sofrida e corajosa América Latina.
Ele explica ter sempre convivido com as distâncias. E elas não
significam apenas as imensas distâncias geográficas da Amazônia,
mas são inclusive e principalmente aquelas da desigualdade
social, do machismo e do racismo, que produzem violência e são
em si mesmas violentas. Elas não são, poderíamos concluir,
fruto do ocaso, de um acidente, mas são os frutos de ações
públicas e privadas, ações pessoais e coletivas que se
interligam.
O
bispo, magro desde sempre, tem mãos que revelam os ossos e
acompanham no ar, trêmulas, as palavras e o olhar, ambos
firmes. Apaixonado pela causa da liberdade e da vida, ele
explica que a esperança e a fé devem nos acompanhar
“antes, durante e depois”. Isso é, sempre. Ou, parodiando
o poeta alemão do século XVIII Lessing, poderemos repetir
que o medo nos torna menores; e a esperança nos leva além de
nós mesmos, de nossas sombras.
E há sinais positivos de persistência e coragem que vem do
movimento social, como as mobilizações do MST; a discussão
sobre a transposição do Rio São Francisco, a partir da
greve de fome empreendida pelo bispo Luiz Flávio Cappio e
tantas manifestações populares pelo país.
Que
este Relatório de 2005 seja também mais que um grito. Que
seja um alerta e nos una na construção continuada e teimosa
de uma sociedade melhor, fraterna e justa. Que o Deus da vida
que torna nosso corpo sua morada, nos auxilie a proteger e
tratar como santo e sagrado os corpos de tantos que são
despossuídos dos bens mais elementares, inclusive a
cidadania.
Ricardo
Rezende Figueira
Padre,
Coordenador do Grupo
de
Pesquisa sobre Trabalho Escravo
Contemporâneo
da UFRJ, diretor do
Movimento
Humanos Direitos (MHuD)
e
presidente do Conselho Deliberativo da
Rede
Social de Justiça e Direitos Humanos
Sobre a construção histórica
dos direitos humanos veja Norberto Bobbio in A
era dos direitos (Rio de Janeiro, Elvesier, 2004).
Conforme carta do MST
entregue ao presidente Lula em 26.10.2005.
O Globo, 30.10.2005: 14,
seção “O País”.
Hannah Arendt in Sobre
a violência, Rio de Janeiro, Relume Damará, 1994:
36-37.
Hannah Arendt (in
Homens em
tempos sombrios, São Paulo: Cia. das Letras, 1999:
14-15) ao receber
um prêmio, cita dois versos de Lessing, e faz a afirmação
com outro sentido do que esse utilizado aqui.
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