O
grande problema deste e de outros crimes contra os
trabalhadores rurais é o entrave que o poder judiciário
representa no julgamento destes crimes, com atenção maior
para o Pará. Neste estado, nos últimos 33 anos, houve
772 assassinatos de trabalhadores rurais e de pessoas que os
apoiavam. Somente em três casos houve o julgamento de
mandantes dos crimes.
Cortina
de Fumaça
A
respeito das medidas anunciadas após os assassinatos e
massacres de lutadores do povo
Antônio
Canuto
O ano de 2005, como os demais, está marcado pelo
estigma da violência no campo. Até o final de agosto, a
Comissão Pastoral da Terra (CPT) registrou 28 assassinatos.
Um a mais do que em igual período de 2004, quando foram
registrados 27 assassinatos.
Uma
morte, porém, no início do ano, teve uma repercussão
inusitada. Em 12 de fevereiro, na longínqua e desconhecida
Anapu, no Pará, era bárbara e friamente assassinada Irmã
Dorothy Stang, missionária norte-americana, naturalizada
brasileira, 74 anos. Ela trabalhava, desde 1974, junto aos
camponeses do Pará e há mais de 20 anos em Anapu. Apoiava-os
na conquista e na defesa da terra. E com eles projetou um tipo
de exploração da terra, casando a produção para o sustento
familiar e a defesa do meio ambiente, os chamados PDS –
Projetos de Desenvolvimento Sustentável.
O
fato de a missionária ser americana, mulher, idosa; seu
sorriso contagiante e as circunstâncias em que aconteceu sua
morte, depois de ter lido para o seu assassino versículos do
Evangelho, provocaram comoção geral. A apresentação da
publicação anual da CPT “Conflitos no Campo Brasil –
2004” assim registrou a repercussão que o caso provocou:
“Este
assassinato provocou uma gigante onda de indignação nacional
e internacional. Qual uma verdadeira tsunami, esta tragédia
atingiu o Planalto Central, invadiu o Palácio do Planalto, o
Congresso e o Supremo Tribunal Federal. Tomou conta das redações
dos jornais e dos estúdios das TVs e das rádios. E seus
abalos se sentiram em todo o mundo. A morte de Irmã Dorothy
irrompeu com a força da ressurreição. Sua ação, humilde e
desconhecida, pequena e quase isolada, multiplicou-se por
todos os cantos do Brasil, conquistando corações e mentes e
ganhou as dimensões do mundo e do tempo.”
A
reação do governo foi rápida. Ministros de Estado se
deslocaram até Anapu. Autoridades de todos os níveis se
manifestaram condenando a agressão. O Exército Brasileiro
deslocou contingentes para a região. Promessas de punição
implacável dos culpados se repetiram. Medidas para
regularizar a posse das terras foram anunciadas e áreas de
proteção ambiental criadas.
Não
demorou muito tempo e os dois pistoleiros executores do crime
foram detidos. Depois foi preso o intermediário que os
contratou e, por fim, dois fazendeiros, apontados como
mandantes do crime. As investigações da Polícia Federal
apontaram, porém, para uma ação envolvendo um consórcio de
fazendeiros e madeireiros interessados na eliminação desta
missionária que se interpunha no seu caminho à busca do
enriquecimento rápido.
Federalização
O
grande problema deste e de outros crimes contra os
trabalhadores rurais é o entrave que o poder judiciário
representa no julgamento destes crimes, com atenção maior
para o Pará. Neste estado, nos
últimos 33 anos, houve 772 assassinatos de trabalhadores
rurais e de pessoas que os apoiavam. Somente em três casos
houve o julgamento de mandantes dos crimes - os casos de
Expedito Ribeiro, de João Canuto e de Eldorado do Carajás.
Estes julgamentos só foram possíveis pela luta e pressão,
com denúncias constantes de entidades de direitos humanos
tanto nacionais quanto internacionais. E mesmo nestes três
casos os mandantes se encontram em liberdade. No caso de
Expedito Ribeiro, o condenado, Jerônimo Alves de Amorim,
cumpre a sentença em prisão domiciliar, em sua luxuosa residência
em Goiânia. Os mandantes do assassinato de João Canuto,
apesar de condenados, há dois anos respondem os recursos em
liberdade e o processo ainda continua na presidência do
Tribunal. No caso
de Eldorado do Carajás, no qual apenas dois comandantes da
operação foram condenados, Coronel Pantoja e o Major
Oliveira, o primeiro conseguiu junto ao STF habeas corpus para
responder a apelação em liberdade. Os advogados do Major
Oliveira vão pedir igual benefício para ele.
Outros
processos que julgam crimes que também tiveram repercussão
continuam parados. São os casos do assassinato do advogado
Gabriel Pimenta, em Marabá – há 24 anos; da chacina de
oito trabalhadores na Fazenda Ubá, em São João do Araguaia
– há 20 anos; da chacina de cinco trabalhadores na Fazenda
Princesa, em Marabá – há 19 anos; do assassinato do
sindicalista Braz, em Rio Maria – há 15 anos; do
assassinato do sindicalista Arnaldo Delcídio, em Eldorado –
há 12 anos; do assassinato de Onalício Barros e Valentim
Serra, em Parauapebas – há 7 anos.
Diante
desta situação, como garantir um julgamento sério e justo
dos envolvidos no assassinato de Irmã Dorothy? Não fosse a
atuação da Polícia Federal e o rumo das investigações,
teria ficado totalmente prejudicado. O nome de alguns
fazendeiros não teriam aparecido. E o rumo das investigações
poderia ter sido totalmente outro. A polícia civil,
inclusive, divulgou que o pistoleiro Rayfran das Neves,
assassino da irmã, teria apontado como mandante do crime
Francisco de Assis, o Chiquinho do PT, amigo da irmã e
batalhador dos PDS, numa tentativa de tumultuar as investigações.
A
saída encontrada pelas entidades
da sociedade civil, entre elas CNBB, CPT, MST, Fetagri e
Caritas, foi pedir que o processo fosse julgado em esfera
federal. Membros do governo federal, o Secretário
Especial de Direitos Humanos, Nilmário Miranda, e o ministro
Miguel Rossetto, do Ministério Desenvolvimento Agrário, também
eram da mesma opinião. Infelizmente um acordo foi costurado
entre o governo do Estado e setores do governo federal
para que o julgamento fosse realizado no Pará. Mesmo
assim, o Procurador-Geral da República, Cláudio Fontelles,
encaminhou ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) pedido de
federalização do processo, com sólida documentação,
alicerçado na Emenda Constitucional nº 45. O STF, porém, ao
julgar o pedido, no dia 8 de maio, unanimemente o indeferiu,
por improcedente.
Esta
decisão foi criticada pela CPT em nota do dia 10 de junho:
“Aquela
sessão do Tribunal transformou-se no maior, mais repetitivo e
mais grandiloqüente panegírico de consagração da Justiça
paraense. Uma Justiça modelo para todo o país! No ar pairava
a pergunta: E as graves omissões históricas de atuação
desta Justiça? “São coisas do passado, não omissão, nem
leniência, nem tibieza do Judiciário paraense”, retrucaram
vários ministros. Por ironia da história, no mesmo horário
desta sessão do STJ, era assassinado em Paraopebas, Pará,
Antônio Matos da Silva, pai de um filhinho prematuro
que ainda se encontrava no hospital junto com sua mãe. O
grande argumento dos magistrados do STJ foi a celeridade do
andamento do processo de julgamento do assassinato da Ir.
Dorothy. Venceu, pois, a esperteza do Judiciário paraense em
se livrar, desta forma, do vexame da federalização. Não
obstante esta encenação, três dias depois da morte da Ir.
Dorothy foram assassinados dois trabalhadores rurais, cujos
casos continuam desdenhados pela tal Justiça.
Esta lamentável decisão
tem seus significados e suas conseqüências: Ela foi, sem dúvida,
um reforço ao corporativismo do Judiciário e do Ministério
Público, que vinham fazendo forte pressão contra a
federalização. Foi uma pá de cal sobre a incômoda emenda
constitucional nº 45 que, a partir do que se sabe do nosso
Judiciário, criou sabiamente a possibilidade de deslocamento
de competência em face de incidente e cuja aplicação era a
grande expectativa de muitos brasileiros e brasileiras. Foi um
especial e curioso apoio ao Judiciário paraense, agora
totalmente à vontade para continuar a conivência e a aliança
com grileiros, madeireiros e pecuaristas, travestidos do
agronegócio, continuamente denunciados por seus crimes contra
pessoas indefesas e contra a frágil floresta Amazônica. Foi
uma perigosa perda de credibilidade do STJ, que, no episódio,
mostrou-se corporativista, insensível à dramática realidade
de sofrimento dos lavradores e auto-suficiente ao pontificar
monoliticamente sobre o assunto, desconhecendo o dramático
simbolismo envolto na morte da Irmã Dorothy Stang.”
O
processo contra os cinco presos envolvidos no caso de Ir
Dorothy avança num ritmo até rápido para os parâmetros do
Pará, numa tentativa de dar resposta à opinião pública.
Mas esta mesma justiça caminha no mesmo ritmo de sempre com
relação aos demais casos, inclusive nos de outros
trabalhadores assassinados nos dias imediatos ao assassinato
de Irmã Dorothy, como afirma a nota da CPT.
Impunidade
e morosidade não são privilégios do Pará
Impunidade
e morosidade da justiça, sobretudo quando se trata de crimes
cometidos contra os trabalhadores, não são privilégio do
Pará.
Em
2004, dois massacres em Minas Gerais ganharam as manchetes dos
grandes meios de comunicação do país. O massacre de Unaí,
com o assassinato de três auditores fiscais do Ministério do
Trabalho e um motorista; e o massacre de Felizburgo, com a
morte de cinco trabalhadores
sem terra, ligados ao MST.
No caso de Unaí, sete pessoas acabaram sendo presas
por envolvimento nas mortes, além dos dois acusados de serem
os mandantes, os irmãos Antério e Norberto Mânica, que também
foram presos. Antério Mânica, mesmo tendo sido preso em 16
de setembro, acabou sendo eleito prefeito da cidade de Unaí.
Logo no começo de outubro foi-lhe concedido hábeas corpus.
No dia 10 de dezembro voltou a ser preso devido a mandado
judicial expedido pela 9ª Vara da Justiça Federal de Belo
Horizonte. Mas, no dia 16 de dezembro, o 1º Tribunal Regional
Federal de Brasília, concedeu-lhe novo habeas
corpus. Está em pleno exercício de seu mandato.
Já
seu irmão Norberto, depois de pouco mais de um ano preso,
conseguiu habeas corpus concedido pelo STF, no dia 16 de
agosto de 2005. O relator do pedido, Sepúlveda Pertence, no
seu voto favorável à concessão do habeas corpus, disse que
a prisão preventiva não pode se prestar à aplicação
antecipada da pena. “Prisão preventiva em defesa da ordem pública,
ou é coisa diversa à antecipação da pena que se gostaria
de aplicar a uma imputação a ser julgada ou é
inconstitucional, o que representa claramente antecipação de
uma pena sem que o processo chegue a seu termo.” Os nove
acusados do massacre foram pronunciados em dezembro de 2004 e
devem ir a júri popular. Antério Manica, por ser prefeito,
deverá ser julgado pelo Tribunal Regional Federal
No
caso do massacre de Felizburgo, acabaram sendo presas 6
pessoas das 16 denunciadas. Três dos presos foram soltos dias
depois por falta de provas de seu envolvimento. O fazendeiro
Adriano Chafik Luedy, que participou do massacre, preso em
dezembro, conseguiu hábeas corpus do STJ no dia 8 de abril.
Em 20 de maio, foi decretada nova prisão preventiva
contra ele. Ficou foragido da justiça até 28 de agosto,
quando foi capturado e preso.
Outro
caso em que a justiça tem agido favoravelmente a quem cometeu
crimes contra os trabalhadores ocorreu no dia 23 de setembro.
O Ministro Cezar Peluso, do STF, concedeu habeas corpus ao
coronel Mário Colares Pantoja, condenado em primeira e
segunda instâncias a 228 anos de prisão pela Justiça do Pará
por liderar a tropa da PM no episódio de Eldorado do Carajás,
que resultou na morte de 19 agricultores sem-terra. No seu
despacho, o ministro afirma: “A
garantia constitucional não tolera execução de sentença
condenatória, em qualquer de suas eficácias, antes do trânsito
em julgado.”
Cadeia
é para pobre
Diferentemente
do que se demonstrou acima, os trabalhadores acusados, muitas
vezes sem provas e fundamento, dificilmente
conseguem o beneficio do habeas corpus.
Um grupo de oito trabalhadores da Paraíba ficaram
presos por 18 meses, acusados de homicídio. Sem provas contra
eles, mesmo assim vários pedidos de hábeas corpus lhes foram
negados. Presos em maio de 2002, só no final de 2004 é lhes
foi concedido este benefício da lei.
Três trabalhadores sem terra de Itararema, Ceará, estão
presos há um ano e oito meses, acusados da morte de um
pistoleiro. E o julgamento ainda não foi marcado. O advogado
dos sem-terra entrou, no final de setembro, com petição
junto ao STF para que o
mesmo benefício concedido ao coronel Mário Pantoja
seja aplicado aos trabalhadores.
E
se pode desfiar um rosário de casos em que para os
trabalhadores o hábeas corpus é sistematicamente negado, sob
as mais diversas alegações. Fica claro na justiça
brasileira que
todos são iguais perante a lei. Mas alguns são mais iguais.
A quem tem status, nome e recursos a justiça é mais atenta.
Cadeia, como se diz popularmente, é mesmo para os pobres.
E
as promessas feitas?
Depois das mortes que têm grande repercussão,
o governo sempre anuncia uma série de medidas
destinadas a dar uma resposta à opinião pública. O
professor Plínio de Arruda Sampaio, velho batalhador da
reforma agrária, em artigo intitulado “O kit massacre”,
publicado no Jornal Folha de São Paulo, em 24 de fevereiro de
2005, doze dias após o assassinato de irmã Dorothy, dizia:
“O
governo federal criou, anos atrás, um "kit" de
providências destinadas a
administrar
as crises provocadas por massacres de posseiros, sem-terra,
seringueiros
e indígenas - ocorrências freqüentes nos "grotões"
do país. O
"kit
massacre" inclui: declarações indignadas do presidente
e seus
ministros;
presença dos ministros da área no local do incidente (se
possível
acompanhando o enterro); promessa de punição "implacável"
aos
criminosos;
prisão de três ou quatro suspeitos (logo soltos por falta de
provas);
e anúncio de "factóides" destinados a dar à opinião
pública a
impressão
de que o governo está agindo energicamente.
A
vida média de um "kit massacre" é de 15 a 20 dias.
Depois disso, a
matéria
sai das páginas nobres dos grandes jornais e, em conseqüência,
o
"kit"
é engavetado até o massacre seguinte. O governo Lula herdou
essa
metodologia
e a está aplicando à risca.
O
"kit" da irmã Dorothy, por exemplo, já está quase
completo. Já teve
declarações
pungentes, viagem de ministros, semblantes de circunstância,
prisão
de suspeitos. Nesta semana surgiu o "pacote de factóides".”
O
autor citou como “factóides” a criação de cinco
reservas florestais na
região amazônica,
abrangendo uma área de cerca de 8 milhões de km². A criação
destas reservas, segundo ele, não passavam de factóides
porque não há qualquer condição de impedir a invasão
dessas reservas sem que, ao mesmo tempo, se desenvolva um
efetivo processo de reforma agrária.
Na
realidade, até fins de setembro, a série de medidas
anunciadas não havia produzido
efeitos práticos e a violência continuava. O clima no município
ainda é extremamente tenso. Grileiros e madeireiros agem com
total desenvoltura e com apoio da polícia. No final de
agosto, a polícia civil de Anapu, aliada ao fazendeiro e
madeireiro Luiz Ungaratti, que chegou a ser citado como um dos
envolvidos na morte da Ir. Dorothy, e utilizando um carro do
próprio fazendeiro, prendeu dois agricultores, os
irmãos Miguel e Francisco Valentino dos Santos, na Gleba 53,
área do Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) Esperança.
Os policiais alegaram que os trabalhadores estavam sendo
presos porque eram “muito valentões” e porque teriam em
suas dependências armas. Depois percorreram o PDS
Esperança avisando às famílias que deveriam
desocupar os barracos em 15 dias, pois, caso não o
fizessem, suas casas seriam incendiadas.
No
caso do assassinato dos auditores fiscais, em Unaí, a indignação que o massacre provocou fez retirar das gavetas o projeto
de Emenda Constitucional que confisca as terras onde se
constata a existência de exploração do trabalho escravo. O
projeto, que já havia sido aprovado no Senado, gerou debates
e foi aprovado na Câmara Federal. Como sofreu diversas
emendas, voltou para o Senado,
e até agora, passados quase dois anos do crime,
continua engavetado. Não há interesse real em tornar lei
este confisco e em punir severamente os que atentam tão
abertamente contra a dignidade da pessoa humana.
A
desapropriação de terras para o assentamento de
trabalhadores, prometida depois do massacre de Felizburgo,
anda a passos lentos.
Após
o massacre de Eldorado do Carajás o governo Fernando Henrique
Cardoso criou um ministério próprio para cuidar da reforma
agrária, hoje o Ministério do Desenvolvimento Agrário. O órgão
responsável pelo encaminhamento e execução das ações,
o Incra, porém, foi sendo paulatinamente sucateado.
Todas estas medidas, como bem dizia o professor Plínio de
Arruda Sampaio, no texto citado, são apenas “factóides”.
E “esses
factóides não passam de cortina de fumaça para esconder a
falta de coragem das mais altas autoridades da República em
tomar as providências que podem, de fato, evitar massacres de
pessoas no meio rural.”
Antônio Canuto é secretário da Comissão Pastoral da
Terra Nacional
|