A morte de Dorothy Mae Stang é a coroação de um processo político-econômico
que sangra não apenas corpos físicos, mas uma economia e um
futuro. É parte desse movimento que articulou na Amazônia,
no passado, militares, empresários e aventureiros, algumas
vezes reunidos na mesma pessoa, como não deixa esquecer o
coronel Curió. As frases “seu sangue não foi em vão” e
“seu sangue será semente” podem simbolizar um compromisso
de vida, uma responsabilidade solidária e uma esperança de
construção de uma sociedade justa. Mas podem representar
apenas um aquietar de consciências que torne infindável o
maltratar das pessoas, dos direitos e da Justiça no Pará.
As
várias mortes de Irmã Dorothy Mae Stang
Aton
Fon Filho
Antecedentes
Novo
símbolo da luta pelos direitos humanos, a religiosa, que foi
alvo de tiros em Anapu, no Estado do Pará, morreu pela
primeira vez na década de 70 e seguiu morrendo outras vezes
após o dia 12 de fevereiro deste ano.
Irmã
Dorothy Mae Stang começou a ser assassinada quando os
militares empoderados em 1964, visando à proteção do latifúndio
contra os questionamentos que se apresentavam em outras áreas
e à penetração capitalista na Amazônia, lançaram as bases
para o programa de ocupação da região.
Com
o alarde proporcionado por vastíssimos recursos para a
propaganda, anunciavam que o empreendimento levaria “homens
sem terra para a terra sem homens” e forneceria recursos
naturais e energia para a região, de modo que nas vastíssimas
áreas concedidas a empresários que se comprometessem a
investir no desenvolvimento da região estariam presentes
todos os fatores produtivos, capital, força de trabalho,
energia e matérias-primas.
O
que se apresentava, porém, como eliminador de raízes do
conflito fundiário resultou no maior gerador da violência,
corrupção, apadrinhamento e impunidade, eis que, longe de
promover a expansão do meio técnico na região, levando a
produção capitalista até onde sequer se conhecia ainda a
presença de grupos autóctones, os militares lograram a inserção
de todos os elementos de atraso, que até hoje são característicos
do Pará.
Falhou
a equação proposta pelos militares, no que esteve
determinada pela visão positivista, quando considerou que os
atores sociais se conformariam em desempenhar o papel que a
eles fora designado no projeto.
Ao
contrário do planejado, porém, o elemento que se imaginava
viesse a constituir o fator primordial do novo, o empreendedor
capitalista que, com seus recursos e mentalidade avançada,
possibilitaria a interação de todos os demais, optou por
revelar que sua face de perseguidor do lucro não se
diferenciava de sua face concentradora da propriedade da terra
reduzida à improdutividade, de um lado, ou de explorador
escravista, de outro.
Por
quê, raciocinaram os primeiros, imobilizar capitais nem
sempre realmente existentes ou disponíveis, se era possível
pleitear – e muitas vezes obter – que o Estado fornecesse
crédito tendo como garantia os títulos por ele próprio
outorgados, e com uma fiscalização praticamente inexistente
ou posta em mãos de funcionários as quais sempre se podia
umedecer com agrados? Ou, por que fazê-lo, se era possível
apenas manter os títulos de concessão, aguardando que as
pressões resultantes da presença do elemento humano
deslocado obrigassem o Estado a fornecer a infra-estrutura
necessária, aquela que pelos termos conveniados cabia como
contrapartida ao capital?
A
negativa dos contemplados com as concessões de realizar os
investimentos compromissados implicou na manutenção
inalterada da vitória da dura realidade da natureza sobre o
agente humano, e no prolongamento da falta de mão-de-obra. Se
a ausência de infra-estrutura desestimulava a ida para a região
na condição de trabalhador agrícola, aqueles que se
deixavam seduzir pela promessa da “terra sem homens” não
havia porque se submeterem ao trabalho assalariado, quando a
vastidão da selva prometia a cada um a parcela que julgasse
necessária para seu esforço.
Já
por isso o que pudesse ser a vertente avançada do capitalismo
viu-se frente à dificuldade de concretizar o anunciado
desenvolvimento e, repetindo a anterior solução das plantations,
recorreu freqüentemente ao emprego de trabalho escravo. A
respeito, recorde-se ter sido denunciado, mais de uma vez, o
emprego de mão-de-obra cativa por empresas capitalistas, as
mais avançadas e reconhecidas, como o Bradesco (fazendas
reunidas Taina Recan, em Santa do Araguaia, e Alto Rio Capim,
em Paragominas) e a Volkswagen (fazenda Vale do Rio
Cristalino, no sul do Pará).
Mantidas
intocadas por mais de dez anos, as áreas que tinham sido
objeto das concessões outorgadas pelos militares deveriam ter
retornado há muito ao controle da União, mas, em vez disso,
vieram e vêm sendo utilizadas ainda hoje como garantia para
esquema de financiamento de projetos existentes somente no
papel, sem que fossem realizadas as obras conveniadas, e para
a exploração predatória da madeira, o que somou às
riquezas provenientes das concessões de terras aquelas originárias
da degradação do meio ambiente e das fraudes contra os
programas de desenvolvimento da Amazônia.
A
Terra do Meio, entre os rios Xingu e Tapajós, assiste há
muito o conflito entre os posseiros que se estabeleceram na
região e os concessionários inadimplentes que ainda querem
fazer valer títulos por esse motivo já invalidados.
À
omissão da União de declarar a nulidade dos títulos face ao
descumprimento dos contratos e de propor as ações
reivindicatórias nos casos em que necessário, somam-se a inação
e lentidão do Judiciário e o acumpliciamento de autoridades
com os latifundiários, o que garante a cobertura da polícia
à jagunçagem e os pistoleiros, perpetuando o conflito e a
violência.
Contra
essa prática de fraudes, degradação ambiental e apropriação
latifundiária da terra, entidades ambientais e de apoio aos
trabalhadores rurais desenharam Projeto de Desenvolvimento
Sustentado, que garante a sustentabilidade ambiental e da
produção camponesa, em contraste com as políticas predatórias
da natureza, do erário e dos direitos humanos. A esse projeto
de desenvolvimento sustentado, Irmã Dorothy dedicou seu tempo
e sua vida.
A
morte de Dorothy Mae Stang é a coroação de um processo político-econômico
que sangra não apenas corpos físicos, mas uma economia e um
futuro. É parte desse movimento que articulou na Amazônia,
no passado, militares, empresários e aventureiros, algumas
vezes reunidos na mesma pessoa, como não deixa esquecer o
coronel Curió.
Mas
as coroações, sendo momentos de mudança, representam uma
transformação num ciclo, mas não seu término. É a
abertura de um momento, que prolonga a monarquia. A monarquia
do atropelo dos direitos humanos no Estado do Pará não
parece, longe disso, próxima de ajustar contas com a República
brasileira.
Conseqüentes
Morta
Irmã Dorothy, tivemos a ilusão da presença do Estado na
Terra do Meio, com o desdobrar de forças militares e da Polícia
Federal, o que não impediu as comemorações e os fogos com
que a classe dominante de Anapu e Pacajá saudaram o homicídio.
Passados
poucos dias, a polícia estadual voltava à carga contra os
trabalhadores rurais, buscando incidência no processo em que
se apurava o crime contra a religiosa, perseguindo testemunhas
e praticando represálias contra aqueles que, com ela,
partilhavam a defesa dos PDSs.
Pareceu
a todos, ainda que não ao Ministro Nilmário Miranda, em sua
primeira aparição no caso, que estivéssemos diante da
oportunidade para um avanço na luta contra a impunidade,
isolando o compadrio que se tem apontado marcar relações
entre o Executivo, o Judiciário e o latifúndio no Estado do
Pará, pela via da federalização, que se vinha de aprovar,
dos crimes contra os direitos humanos.
O
próprio Procurador Geral da República assim entendeu, pois
Irmã Dorothy fora diversas vezes ameaçada pelas mesmas
articulações que produziram sua morte, tendo dado ciência
às autoridades policiais estaduais por diversas vezes. Esse
fato constituiu o fundamento principal do pedido de
deslocamento de competência formulado para o Superior
Tribunal de Justiça, por indicativo da incapacidade do Estado
do Pará de cuidar do crime por descaso, desinteresse, ausência
de vontade política e a falta de condições pessoais ou
materiais, entre outras.
Com
o evento, porém, e a imediata presença de forças federais
realizando investigações e buscando garantir a tranqüilidade
na área, o Governo, o Ministério Público e o Poder Judiciário
locais anteviram, como toda a sociedade brasileira, a
possibilidade de vir aquele a ser o primeiro caso de
federalização de um processo por grave violação de
direitos humanos, e produziram também uma presença de
impacto, visando à celeridade nos procedimentos e repercussão
na mídia. Dessa forma, com a anuência da defesa,
desinteressada da federalização, e da assistência da acusação,
temerosa que delongas processuais resultassem na libertação
dos acusados com o argumento do descumprimento de prazos do
processo, audiências foram realizadas em seqüência
apertada, deslocando-se o Magistrado que o presidia e seus
auxiliares para seguidas atividades em Belém ou Altamira.
De
tais atitudes valeu-se o Estado do Pará, no que obteve o
respaldo da Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça,
que, por unanimidade, negou o pedido de deslocamento de competência
para a Justiça Federal, reduzindo a questão da capacidade ou
interesse de preservação dos direitos humanos apenas à
garantia de acesso à justiça, para o que valeram as providências
processuais adotadas.
Optou,
assim, o Superior Tribunal de Justiça, pelo entendimento de
que a questão da capacidade ou interesse de preservação dos
direitos humanos que autoriza o deslocamento de competência
para a Justiça Federal é apenas aquela que se manifesta após
o crime, excluído o exame da inapetência governamental com a
preservação do direito à vida, ou de sua cumplicidade ou
responsabilidade na violação deste.
Tal
entendimento torna, é evidente, letra morta o dispositivo que
introduziu a possibilidade da federalização, eis que sempre
poderão as autoridades estaduais alegar esforços realizados
para a punição dos responsáveis. Ainda mais que, tendo
esses esforços orientação apenas processual, a
possibilidade de permanecerem os criminosos impunes não se vê,
de modo algum, afastada.
Morreu
novamente Irmã Dorothy quando as esperanças de que valessem
as possibilidades de federalização dos crimes contra os
direitos humanos se viram, assim, frustradas, estabelecendo
para o dispositivo constitucional a alcunha de federalização,
não para inglês, mas para relator da ONU ver.
Por
tais motivos céleres, o processo contra os acusados de matar
Irmã Dorothy resultou em sentença de pronúncia que
determinou seu julgamento pelo Tribunal do Júri. Contra tal
decisão não recorreram os réus Rayfran das Neves Sales e
Clodoaldo Carlos Batista, executores diretos, pelo que tiveram
eles designado os dias 9 e 10 de dezembro de 2005 para
comparecer perante os jurados, desaforado o processo para a
comarca de Belém.
Recurso
em sentido estrito interposto pelos demais réus foi improvido
pelo Tribunal de Justiça do Pará, tendo a desembargadora
Rosa Maria Portugal Gueiros emitido voto discordante em relação
ao réu Regivaldo Pereira Galvão, que autoriza a interposição
de novo recurso e garante, com isso, separar os julgamentos
dos réus.
Advogados
dos latifundiários têm recorrentemente traçado como estratégia
em casos de assassinatos de defensores de direitos humanos
atuar com vistas a desmembrar os processos, de modo que os
pistoleiros sejam julgados separados dos mandantes, e de que
os julgamentos destes sofram a máxima delonga possível. Com
isso, encontram sempre algum magistrado, em alguma instância
que conceda habeas
corpus aceitando a alegação de excesso de prazo, ainda
que, jurisprudencialmente, essa alegação não se sustente
quando os prazos são ultrapassados por culpa da própria
defesa. Não foi muito diferente disso o que produziu o próprio
Supremo Tribunal Federal, ao conceder habeas
corpus ao coronel Pantoja, condenado pelo massacre de 19
trabalhadores rurais em Eldorado de Carajás, mesmo após ter
sido a decisão condenatória proferida pelo Tribunal do Júri
confirmada pelo Tribunal de Justiça do Estado do Pará.
O
que ocorre é que a concessão da ordem de habeas corpus
implica a imediata expedição de ordem de soltura, de modo
que mesmo que a decisão seja posteriormente revogada, o
criminoso já terá sido libertado e poderá permanecer
foragido.
Não
parece longe dessa hipótese o fato de renitirem os acusados
de serem os mandantes da morte de Irmã Dorothy no emprego de
sucessivos recursos processuais protelatórios que, à
primeira vista, trariam apenas prejuízo para suas próprias
situações, eis que prolongam uma prisão processual anterior
ao julgamento, em lugar de buscar desde logo, ante o tribunal
do júri, as absolvições que acreditem possíveis.
Quase
uma dezena de pedidos de habeas corpus foram ajuizados perante
diversas instâncias pelos acusados de matar Irmã Dorothy. Até
agora todos foram negados. O voto da desembargadora Rosa Maria
Portugal Gueiros, ao gerar a hipótese processual para
interposição de embargos infringentes, premiou aquela estratégia.
Pode ter representado apenas um escolho na senda da Justiça.
Mas pode vir a representar o ensaio geral antes do desfile da
escola de samba. Ou a nova morte de Irmã Dorothy Mae Stang.
As
frases “seu sangue não foi em vão” e “seu sangue será
semente” podem simbolizar um compromisso de vida, uma
responsabilidade solidária e uma esperança de construção
de uma sociedade justa. Mas podem representar apenas um
aquietar de consciências que torne infindável o maltratar
das pessoas, dos direitos e da Justiça no Pará.
Aton Fon Filho é
advogado, diretor da Rede Social de Justiça e Direitos
Humanos e diretor do Sindicato dos Advogados do Estado de
São Paulo
Regivaldo Pereira Galvão,
o “Taradão”, um dos acusados de ordenar o assassinato
de Ir. Dorothy, é co-réu nos processos em que foi
denunciado o ex-governador do Pará e ex-senador Jader
Barbalho por fraudes no emprego de recursos da SUDAM.
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