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Relatórios

 

Releva, ainda uma vez, atentar para a situação de Alcântara, porquanto ali se está, ademais, esboçando programas que as comunidades ameaçadas apontam como verdadeiro escárnio. É que para a região foram desenhadas várias intervenções de políticas públicas – extensão de rede elétrica, contratação de agentes de saúde etc – sendo elas, porém, apresentadas como se contrapartidas fossem dos deslocamentos a serem realizados e da apropriação das áreas quilombolas.

 

Quilombolas – Do lado de fora da lei

 Aton Fon Filho[1]

 

Ao fim do primeiro ano do governo Lula, saudávamos a contenção do Acordo de Salvaguardas Tecnológicas com os Estados Unidos da América na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, ao mesmo tempo em que alertávamos para as preocupantes sombras que passavam a cobrir a região de Alcântara, no Maranhão, resultantes da aprovação de acordo similar com a Ucrânia.

Finda a primeira metade do mandato presidencial, eram os avanços representados pelo Decreto 4887, de 20 de novembro de 2003, e a inação do Incra na execução das tarefas de regularização das áreas quilombolas, somada à articulação contra esses direitos desencadeada pelo Partido da Frente Liberal com sua Ação Direta de Inconstitucionalidade, que ocupavam os pratos do bem e do mal na balança de direitos dos remanescentes de quilombos. O equilíbrio resultante não podia ser mais desencorajador, porquanto implicava a manutenção da situação anterior, um quadro de desrespeito aos direitos econômicos, sociais e culturais desse contingente de brasileiros, há 450 anos resistente.

O esgotamento do terceiro quarto do tempo entregue pelo povo para que o Presidente desse início às mudanças necessárias trouxe também o tempo do esgotamento das paciências e do amadurecimento das ameaças, agora transformadas em agressões concretas.

Agredidos pela Marinha de Guerra do Brasil, os integrantes do Quilombo da Marambaia viram continuados seus dissabores com as restrições que lhe são impostas pela Força, mas viram também, a ela somados, os golpes propagandísticos do Prefeito do Rio de Janeiro, Cesar Maia, em busca de visibilidade para uma articulação de candidatura a vice-presidente da República na chapa tucana em 2006.

Na construção de mais um de seus conhecidos “factóides”, o Prefeito arvorou-se opositor da realidade histórica, pretendendo afirmar aquilo que nem mesmo o Comando Naval ousou, vale dizer, a natureza quilombola do grupo de moradores da Marambaia. Viajante privilegiado em barco no qual os remanescentes quilombolas, como seus antepassados, foram confinados ao porão, o Prefeito enxergou na existência deles um perigo à preservação do meio-ambiente, ainda que sobrevivam apenas de pesca artesanal, ao contrário da praticada pelas grandes naus pesqueiras que agiram as águas da Baía de Mangaratiba, com a concordância ou condescendência da Marinha, ainda que sejam os barcos militares que realizem exercícios de disparos de canhões e lancem bombas ao fundo da baía, exterminando ou afugentando a vida marinha.[2]

Sintomaticamente, também, calou-se o Prefeito pefelista quanto à presença na ilha da empresa Sete Ondas Biomar, para a qual a administração naval concedeu autorização, negada aos quilombolas, para utilizar redes na área do Centro de Adestramento Militar[3].

Designado pelo Decreto 4887/2003 para o processo de regularização e titulação das áreas de remanescentes de quilombos, o próprio Incra teve sua atuação obstada pela Marinha. Assim como a recusa de apresentação dos arquivos da Guerrilha do Araguaia, a atitude militar produziu da parte das autoridades civis da União apenas a amedrontada constituição de um grupo de trabalho, meio pelo qual se determinou fazer de conta que não existiu quebra da hierarquia quando o Comando Naval se opôs ao cumprimento do regulamento presidencial.

Na região de Alcântara, que, com Marambaia, é especialmente acompanhada por este relatório dado o direto enfrentamento com autoridades federais, o início do ano chegou a sugerir perspectivas coloridas, quando, em março, o Grupo Executivo Interministerial se fez presente naquele município, para discutir propostas de intervenção na região. Naquela oportunidade, mensagem do Ministro Chefe da Casa Civil, José Dirceu de Oliveira e Silva, foi lida aos presentes ao seminário abrigado na igreja matriz, expressando o compromisso de que a regularização das áreas quilombolas e todos os planos governamentais para a região seriam executados sem que implicasse novos deslocamentos de comunidades.

A crise política instaurada no País a partir de agosto, trazendo o afastamento do Ministro José Dirceu, abriu passo para que fossem considerados letra morta os compromissos por ele endossados, autorizando pensar que à ferocidade com que o Partido da Frente Liberal – que se vem destacando como principal agrupamento de inimigos da causa quilombola – se lançou contra o ex-Ministro, não esteve ausente também, ainda que marginalmente, o objetivo de desmoralizar o processo de titulação das áreas objeto do art. 68 da Constituição Federal.

Dando concretude àquelas ameaças que decorriam da aprovação de acordo com a Ucrânia para aluguel de bases de lançamento de foguetes, a Agência Espacial Brasileira passou a pressionar os integrantes das comunidades ancestrais visando a que cooperem na delimitação de áreas de instalação de plataformas de lançamento, áreas de que seriam desalojadas as famílias moradoras.

À Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial – SEPPIR, ficou reservado o trabalho de apresentar o ultimatum às comunidades integrantes do território étnico de Alcântara, papel a que seus integrantes acederam de mal grado, na tentativa, ao que parece, de encontrar ainda soluções menos gravosas para aquelas populações. Lástima que os compromissos políticos de defesa dos direitos humanos pelo governo federal se tenham em tão pouco tempo esvaído.

Releva, ainda uma vez, atentar para a situação de Alcântara, porquanto ali se está, ademais, esboçando programas que as comunidades ameaçadas apontam como verdadeiro escárnio. É que para a região foram desenhadas várias intervenções de políticas públicas – extensão de rede elétrica, contratação de agentes de saúde etc – sendo elas, porém, apresentadas como se contrapartidas fossem dos deslocamentos a serem realizados e da apropriação das áreas quilombolas.

Anuncia a Agencia Espacial Brasileira, ainda que indiretamente, pela SEPPIR, haver uma disponibilidade de recursos para utilização nessas políticas, e ameaça os remanescentes de comunidades de quilombos com sua entrega à administração pefelista do município – ainda uma vez! – caso não haja concordância – e rápida – com os projetos de instalação das plataformas e deslocamentos de moradores.

Mas, se a ação de desrespeito aos direitos de populações ancestrais encontra espaço nas esferas municipal, estadual e federal da administração pública, o Poder Judiciário não se vê, ele também, imune a tais pecados.

Em agosto, a 3ª Turma do Tribunal Regional Federal, do Rio Grande do Sul, suspendeu os efeitos da Portaria 19/2004 da Fundação Cultural Palmares, que expressava terem comunidades quilombolas de diversos estados dado entrada com declarações de auto-reconhecimento.

Mais do que efeitos jurídicos concretos, já que o processo de regularização não depende da declaração de auto-reconhecimento, quando o Incra admita essa condição quilombola à comunidade, a decisão aponta para a face retrógrada do judiciário, que se insurge contra o reconhecimento de direitos das comunidades quilombolas, esgrimindo teses de defesa do direito de propriedade, como estes dele não pudessem ser titulares.

A inocuidade da decisão gaúcha, porém, é significativa do fato de que nem os particulares, nem a administração, nem o Poder Judiciário estão dispostos a reconhecer os crimes que a sociedade brasileira praticou contra os antepassados desses povos, nem, muito menos, estão dispostos a concretizar a reparação que a Constituição Federal já estabeleceu lhes fosse prestada.

A Constituição Federal determinou, no art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias que a esses remanescentes deve ser outorgado o título de propriedade das terras que ocupavam na data de sua promulgação.

A Convenção 169 da OIT reconhece aos povos tribais direitos especiais, e os caracteriza como aqueles cujas condições sociais, culturais e econômicas os distingam de outros setores da coletividade nacional, e que estejam regidos, total ou parcialmente, por seus próprios costumes ou tradições ou por legislação especial, pelo que se faz evidente que suas normas se aplicam aos remanescentes de quilombos.

Entre tais direitos estão o de se auto-reconhecerem, pelo que foi ele reproduzido no Decreto 4887, de 2003.

Não se trata, portanto, de apontar inexistência de leis referidas aos remanescentes de quilombos. Havendo tais regramentos, porém, é preciso que se reconheça que ao exercício dos direitos que ali são estabelecidos não foram eles, na prática, convidados.

Essas normas foram integradas ao ordenamento. Mas os quilombolas, mesmo quando nelas expressamente citados, ainda não foram por ela abrigados.



[1] Aton Fon Filho é advogado, diretor da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos e diretor do Sindicato dos Advogados do Estado de São Paulo

[2] Carta da ARQIMAR - Associação de Remanescentes de Quilombo da Ilha da Marambaia ao prefeito Cesar Maia, 28 de fevereiro de 2005.

[3] Boletim Quilombola, COHRE, n. 7, setembro/2005. Demonstrando as incoerências e impropriedades da manifestação agressiva do prefeito Cesar Maia, ver também artigo do professor Wilson Madeira Filho, do Departamento de Direito Público da Universidade Federal Fluminense, no sítio na internet http://www.noticias.uff.br/artigos/2005/03/wilson-madeira-justica-ambiental.php. Para o texto de Cesar Maia, acessar o endereço http://www.cesarmaia.com.br/imprensa/artigos.php?codArtigo=134.