O índice de uma mulher espancada a cada 15 segundos
no Brasil ainda oculta parte da real extensão do problema. O
mesmo pode-se dizer sobre as demais expressões da violência
contra a mulher que foram investigadas, as quais apontaram índices
igualmente obscenos: a cada 15 segundos uma brasileira é
impedida de sair de casa, também a cada 15 segundos outra é
forçada a ter relações sexuais contra sua vontade, a cada 9
segundos outra é ofendida em sua conduta sexual ou por seu
desempenho no trabalho doméstico ou remunerado
As
mulheres brasileiras no início do século 21[1]
Gustavo
Venturi* e Marisol Recamán**
Discriminação
racial e desequilíbrios regionais: o perfil da desigualdade
social
Os traços que definem o
perfil sociodemográfico da mulher brasileira logo
desautorizam o uso do singular, uma vez que os indicadores médios,
em si ruins, tornam-se dramáticos em alguns segmentos da
população feminina. Se no momento da coleta dos dados
¾ das brasileiras (76%) viviam em domicílios com renda
mensal até 5 salários mínimos (sendo 42% com até 2 s.m.) e
somente 8% passavam dos 10 salários, entre as residentes no
Nordeste 86% viviam em famílias com até 5 salários e em
apenas 5% a renda mensal ultrapassava os 10 salários; entre
as mulheres que cresceram e ainda viviam no campo, 93% tinham
renda familiar até 5 salários mínimos e só 1% acima de 10
salários mínimos. Se entre as brasileiras com ascendência
racial branca, 2/3 tinham renda familiar até 5 salários
(67%), entre a maioria com ascendência negra e branca ou só
negra, respectivamente 82% e 87% viviam em domicílios com até
5 salários/mês. Se entre as mulheres brancas 11% tinham
renda familiar acima de 10 salários, entre as brasileiras
negras apenas 2% chegavam a essa faixa de renda por domicílio.
RENDA
FAMILIAR MENSAL, SEGUNDO MACRORREGIÃO, LOCAL DE CRESCIMENTO E
MORADIA (em %)
Renda
Familiar Mensal
|
Total
|
N/CO
|
NE
|
SUL
|
SE
|
Mora
na Cidade
|
Mora
no Campo
|
TT
|
Cresceu
na cidade
|
Cresceu
no campo
|
TT
|
Cresceu
no
campo
|
Cresceu
na cidade
|
Peso
do segmento
|
(100%)
|
(13%)
|
(27%)
|
(15%)
|
(45%)
|
(84%)
|
(52%)
|
(32%)
|
(16%)
|
(13%)
|
(3%)
|
Até
2 S.M.
|
42
|
40
|
63
|
37
|
31
|
38
|
31
|
48
|
65
|
67
|
57
|
+
de 2 a 5 S.M.
|
34
|
36
|
23
|
36
|
38
|
35
|
35
|
35
|
27
|
26
|
30
|
+
de 5 a 10 S.M.
|
12
|
11
|
6
|
15
|
15
|
14
|
16
|
9
|
3
|
2
|
6
|
+
de 10 a 20 S.M.
|
6
|
5
|
4
|
6
|
7
|
7
|
9
|
3
|
1
|
1
|
3
|
+
de 20 S.M.
|
2
|
3
|
1
|
*
|
4
|
3
|
4
|
*
|
-
|
-
|
-
|
Não
sabe/ ñ responde
|
5
|
5
|
2
|
6
|
5
|
5
|
6
|
5
|
4
|
3
|
4
|
Base: Total da amostra
* não atingiu 1%
Fonte:
NOP / FPA
Nacionalmente,
2/3 das mulheres não passaram do ensino fundamental (66%),
mas entre as brancas essa taxa é de 62%, contra 82% entre as
negras e 84% entre as mulheres que cresceram e vivem no campo;
se apenas 7% das brasileiras chegaram ao ensino superior,
entre as brancas 9% atingiram o 3o grau, contra 5%
das que têm ascendência branca e negra, somente 2% das
negras e 1% das que moram no campo. No nordeste 43% das
mulheres não passaram da 4ª série fundamental e apenas 4%
chegaram ao ensino superior, enquanto no sudeste essas taxas são,
respectivamente, de 37% e 7%.
GRAU
DE ESCOLARIDADE, SEGUNDO ASCENDÊNCIA RACIAL
(em%)
Escolaridade
|
Total
|
Branca
|
Branca,
indígena e negra /
Branca
e indígena
|
Negra
e branca
|
Negra
|
Peso
do segmento
|
(100%)
|
(29%)
|
(21%)
|
(38%)
|
(6%)
|
FUNDAMENTAL
OU MENOS
|
66
|
62
|
59
|
68
|
82
|
Nunca
foi à escola
|
7
|
5
|
8
|
7
|
10
|
Até
3ª série
|
18
|
16
|
18
|
17
|
24
|
4ª
série - primário completo
|
13
|
15
|
9
|
13
|
21
|
5ª
a 7ª série
|
18
|
14
|
17
|
21
|
21
|
8ª
série - fundamental completo
|
10
|
12
|
7
|
10
|
6
|
MÉDIO
|
27
|
28
|
31
|
26
|
15
|
1ª
ou 2ª série
|
11
|
10
|
15
|
11
|
9
|
3ª
série – médio completo
|
16
|
18
|
16
|
17
|
6
|
SUPERIOR
|
7
|
9
|
10
|
5
|
2
|
Superior
incompleto
|
3
|
4
|
5
|
2
|
2
|
Superior
completo
|
2
|
4
|
3
|
2
|
-
|
Pós-graduação
|
1
|
1
|
2
|
*
|
-
|
Base: Total da amostra
* não
atingiu 1%
Fonte:
NOP / FPA
Outra
evidência da desigualdade que demarca fortes diferenças
entre as brasileiras pode ser observada no domínio de
computador e no acesso à Internet. Ao final de 2001, 28% das
mulheres já tinham usado computador – 9% afirmaram usar
sempre e 19% disseram ter usado algumas vezes –, contra 72%
que nunca tinham usado, sendo que 10% não tinham sequer visto
um computador de perto. Em relação à rede mundial, apenas
14% já tinham usado (9% algumas vezes, 5% usavam sempre),
sendo que 30% afirmavam ainda não saber o que é a Internet.
Trata-se,
naturalmente, de fenômeno que apresenta claro contraste
geracional: entre as adolescentes (15 a 17 anos), embora
metade nunca tivesse usado um computador (48%) e ¾ nunca
tivessem acessado a Internet (77%), apenas 5% nunca tinham
visto um computador de perto (13% usavam sempre) e 21% não
sabiam o que é a Internet – taxas gradualmente piores a
cada faixa etária seguinte. Mesmo no segmento entre 35 e 44
anos, que apresenta o maior índice de inserção de mulheres
na População Economicamente Ativa (67% na PEA), 77% nunca
tinham usado um computador (9% ainda não tinham visto um de
perto, apenas 8% usavam sempre) e 29% não sabiam o que é a
rede mundial. E entre as brasileiras mais velhas (60 anos ou
mais), 98% nunca tinham usado um computador, 23% sequer tinham
visto um de perto e 57% não sabiam o que é a Internet.
Mas
gerações à parte, as desigualdades regionais, de raça e de
classe social, outra vez se fazem presentes: o uso freqüente
do computador atingia 11% das mulheres no sul do país e 15%
das residentes nas capitais, contra 5% das mulheres no
nordeste e 2% das residentes no campo; chegava a 12% das
mulheres com ascendência branca e a 39% das brasileiras com
renda familiar mensal acima de 10 salários mínimos, contra
7% das mulheres com ascendência branca e negra e 5% só
negra, e a apenas 1% das mulheres com renda familiar até dois
salários. Em outubro de 2001 já tinham navegado alguma vez
pela Internet 16% das mulheres do sudeste, 24% das residentes
nas capitais, 17% das brancas e 60% das brasileiras com renda
familiar acima de 10 salários; contra 8% das mulheres do
nordeste, 3% das residentes no campo, 4% das negras e 2% das
mulheres com renda familiar até dois salários.
Em
suma, mais que a mulher brasileira, os dados de perfil das
entrevistadas logo evidenciaram que existem mulheres
brasileiras, oriundas de – e vivendo em – realidades
sociais bastante distintas. Herdeiras de quinhões muito
desiguais de recursos materiais e simbólicos, era de se
esperar que tanto sua leitura do passado e do presente, quanto
suas opções de vida e expectativas em relação ao futuro,
estivessem influenciadas por visões de mundo muito
diferentes. De fato estão, mas como se verá, partilham também
fortes traços de uma identidade comum de gênero.
Discriminação
no mercado de trabalho, dupla jornada e violência conjugal: a
identidade de gênero
Transversais
às diferenças resultantes das desigualdades regional, de
classes e racial que estruturam as relações sociais no país,
as experiências cotidianas de discriminação e opressão que
as mulheres brasileiras compartilham conferem-lhes uma
identidade de gênero comum a sua condição feminina –
experiências presentes tanto nos espaços público do mercado
de trabalho e da política, quanto na vida privada, onde se
desvendam as faces mais violentas do machismo enraizado na
cultura nacional.
De
fato, a conquista inerente à participação crescente das
mulheres no mercado do trabalho remunerado – positiva ao
refletir avanços em sua busca por autonomia – tem sido
relativizada por três fatores: a qualidade dessa inserção,
a fraca contrapartida da participação masculina na divisão
do trabalho doméstico e, muitas vezes, a reação masculina
violenta à desestabilização – ou ameaça de – do modelo
do pátrio poder nas relações conjugais.
No
momento da coleta dos dados, pouco mais da metade das
brasileiras (53%) pertencia à População Economicamente
Ativa: 40% estavam fazendo algum trabalho remunerado e outras
12% estavam desempregadas. Das que estavam fora da PEA (47%),
a maioria já tinha feito trabalho remunerado (31%), apenas
17% nunca tinham entrado no mercado.
Indagadas
se pudessem escolher livremente, se prefeririam “trabalhar
fora e dedicar-se menos à casa e à família”, ou
“dedicar-se mais à casa e à família, deixando o trabalho
fora de casa em segundo lugar”, a maioria opta pela
autonomia (55%), em detrimento do papel de gênero tradicional
(38%). Essa opção majoritária pelo trabalho remunerado
ocorre tanto entre as que estão na PEA (59% a 34%, chegando
em 65% a 30% entre as desempregadas), quanto entre as que estão
fora da PEA (51% a 42%), inclusive entre as que nunca
trabalharam remuneradamente (59% a 35%); é majoritária
ainda, não só entre as mulheres sem filhos (72% a 22%),
solteiras (71% a 24%) ou descasadas (59% a 30%), mas também
entre as que têm filhos (50% a 43%), ainda que morem com
parceiro e filhos menores de 18 anos (51% a 43%). A opção
pelo papel tradicional da mulher aumenta com a idade, como era
de se esperar, atingindo a maioria apenas entre as mulheres
com 60 anos ou mais (37% a 52%), as aposentadas (37% a 53%) ou
as que não freqüentaram escola (39% a 54%) – que são
segmentos superpostos, em boa medida coincidentes.
Portanto,
a experiência da maioria das brasileiras no mundo público do
trabalho, por um lado, é a expressão da vontade dessa
maioria. Mas a pesquisa também confirmou a predominância do
caráter precário da inserção das brasileiras na PEA. Das
(40%) que estavam exercendo trabalho remunerado, quase 3/5
(57%) estavam no mercado informal, sobretudo como autônomas
irregulares (35%) ou como assalariadas sem registro
profissional (15%), enquanto menos da metade (42%) estava no
mercado formal, principalmente como assalariadas registradas
(22%) e funcionárias públicas (15%).
Com
jornada média de 33 horas e 41 minutos na semana que
antecedeu a pesquisa (38h55 no mercado formal, 29h49 no
informal), cerca de 2/3 declararam trabalhar com regularidade,
enquanto 1/3 fazia bicos ou trabalhos temporários. Somada a
outras rendas eventuais, com seu trabalho remunerado 2/3
tiveram renda individual até 2 salários mínimos no mês
anterior à coleta de dados (65%), sendo 40% um salário ou
menos – faixa em que estavam 59% das trabalhadoras no
mercado informal, 62% das residentes no Nordeste, 75% das
adolescentes, 76% das que não freqüentaram escola, ou 60%
entre as que não passaram da 4a série
fundamental; 47% das trabalhadoras negras e 45% das com ascendência
negra e branca, contra 33% das brancas.
Além
desse retrato ruim – pior que o dos homens qualquer que seja
o segmento focado, como demonstram dados do Censo 2000, do
IBGE – a segunda questão a relativizar a conquista obtida
pelas brasileiras com sua participação crescente no mercado
de trabalho é a debilidade da contrapartida masculina na
divisão do trabalho doméstico.
Resultado
de sua participação na PEA, cerca de 1/3 dos domicílios
(32%) tem uma mulher como principal responsável pelo sustento
da casa[3],
enquanto em 2/3 o principal responsável é um homem (66%). No
momento da coleta dos dados, 21% das entrevistadas eram as
principais provedoras, em 7% dos domicílios suas mães e em
4% outras mulheres residentes (em 12% dos domicílios em que
havia mulheres não havia nenhum homem, incluindo 3% que
moravam sozinhas).
Entre
as casadas ou amigadas (57% das brasileiras), 87% residem em
domicílios em que o principal provedor é um homem (em 83% são
seus parceiros) e 12% em que a principal responsável pelo
sustento é uma mulher (em 9% dos casos, a própria). Outras
36% são provedoras auxiliares, o que totaliza a participação
na renda familiar de 45% das mulheres com parceiro. Uma vez
que entre os parceiros, outros 10% são provedores auxiliares,
chega-se a 93% de participação masculina, contra 45% de
participação feminina, como responsáveis pelo sustento nos
domicílios brasileiros em que há casais coabitando.
E
como é a divisão no trabalho doméstico? Em 96% dos domicílios
em que residem mulheres, uma mulher é a principal responsável
pela execução ou orientação dos afazeres domésticos. Três
em cada quatro entrevistadas (75%) informaram ser as
principais responsáveis pelo trabalho não remunerado (em 14%
dos domicílios são suas mães) e 18% declararam-se
auxiliares, atingindo 93% de participação nas tarefas domésticas.
Entre as 43% brasileiras sem cônjuge, 54% são responsáveis
diretas pelos trabalhos domésticos
(em 30% dos casos suas mães) e 35% são auxiliares,
somando 89% de participação. Entre as que coabitam com
marido ou parceiro, 91% são as principais responsáveis e 6%
são auxiliares, subindo a participação para 97%.
Em
contrapartida, em apenas 2% dos domicílios em que há
mulheres o trabalho doméstico é chefiado por algum homem (1%
o parceiro, 1% outro residente) e em apenas 19% os homens
auxiliam nessas tarefas (sendo 10% os parceiros). Nas unidades
familiares em que casais coabitam, 2% dos parceiros são os
principais responsáveis pelo trabalho doméstico e 18%
auxiliam. Temos, então, uma participação masculina em
apenas 20% dos casos, contra a participação feminina quase
absoluta (97%) na execução dos afazeres domésticos.
Em
suma, entre os casais brasileiros, se quase a
totalidade dos homens são provedores (93%) e praticamente a
totalidade das mulheres executam ou chefiam as tarefas domésticas
(97%), quase a metade das mulheres também é provedora (45%),
contra apenas 1/5 dos homens que participa do trabalho doméstico
(20%). Esse grau de desigualdade na divisão sexual do
trabalho social torna evidente como o peso da dupla jornada,
com o acúmulo dos trabalhos
remunerado e não remunerado tem recaído sobre as
mulheres que, por vontade ou necessidade,
avançaram em direção a sua autodeterminação.
E
qual seria o tamanho da dupla jornada? Indagadas sobre o tempo
dedicado aos cuidados da casa e da família na semana que
antecedeu a coleta dos dados, as entrevistadas informaram uma
jornada semanal média de 39 horas e 36 minutos (23h52 nas
tarefas de limpar a casa, cozinhar, lavar e passar roupas;
13h57 no cuidado de filhos e 1h47 no cuidado de idosos e
doentes). A média cai para 27h42 entre as mulheres não
casadas, e sobe para 48h30, entre as que moram com cônjuge -
contra, segundo estas, apenas 5h36 de seus parceiros. Para as
que estavam fora da PEA, a média atinge 43h42, caindo para
35h48 entre as da PEA – sendo 27h para as que estavam no
mercado formal, 35h24 para as do mercado informal (51h entre
as desempregadas). Somadas às horas de trabalho remunerado, a
dupla jornada aferida foi de, respectivamente, 66h para as
mulheres na PEA formal e 65h para as na PEA informal.
Como
todo fenômeno de opressão, no entanto, sua reprodução
social não ocorreria se não contasse com a internalização
dos valores e práticas dominantes, por parte dos/as
oprimidos/as. Assim, mesmo tendo como maior reclamação a
exploração vivida no mundo doméstico, as mulheres não
deixam de expressar opiniões hegemônicas da sociedade da
qual fazem parte. Se por um lado a maioria das brasileiras
(87%) concorda que “homens e mulheres deveriam dividir
igualmente o trabalho doméstico” (71% de concordância
total, 17% em parte), ao
mesmo tempo acha que a mulher deve ter a palavra final ao
definir como deve ser feito (71% de concordância, 47% total e
24% em parte), e acredita que “mesmo que queiram, os homens
não sabem fazer o trabalho de casa” (55%, 35% e 20%,
respectivamente). Essas atitudes podem revelar uma
(auto)valorização de um conhecimento adquirido no mundo
feminino, um elemento importante neste momento de transição
do papel social da mulher – mas podem também contribuir
para reproduzir a baixa participação dos homens das tarefas
domésticas. Confirmando ainda a força da reprodução
desigual dos papéis na sociedade, a pesquisa revela que nos
domicílios pesquisados com filhos menores de idade, filhas
aparecem como 29% dos auxiliares, contra 9% de filhos; e mesmo
entre as que não vivem com parceiro, filhas e irmãs auxiliam
mais (11% e 15%, respectivamente) que filhos e irmãos (3%
cada).
A
transversalidade da violência contra a mulher
A
outra faceta do padrão machista que caracteriza as relações
de gênero predominantes em todo o país se expressa nos dados
referentes à violência conjugal contra as mulheres – um
fenômeno cuja existência é sabida, mas sobre o qual fala-se
pouco, contribuindo para que se reproduza sob o sigilo e em
nome de uma privacidade criminosa.
Cerca
de uma em cada cinco brasileiras (19%) declara espontaneamente
ter sofrido algum tipo de violência por parte de algum homem:
16% relatam casos de violência física, 2% citam alguma violência
psíquica e 1% lembra do assédio sexual. Porém, quando
estimuladas pela citação de diferentes formas de agressão,
o índice de violência sexista ultrapassa o dobro, alcançando
alarmantes 43%. Um terço das mulheres admite já ter sido vítima,
em algum momento de sua vida, de alguma forma de violência física
(24% desde ameaças com armas, ao cerceamento do direito de ir
e vir; 22% de agressões propriamente ditas e 13% de estupro
conjugal ou abuso); 27% sofreram violências psíquicas e 11%
afirmam já ter sofrido assédio sexual, 10% dos quais
envolvendo abuso de poder, recentemente tipificado em lei[4].
Dentre
as violências mais comuns destacam-se a agressão mais
branda, sob a forma de tapas e empurrões (sofrida ao menos
uma vez por 20%), e a ameaça através de coisas quebradas,
roupas rasgadas, objetos atirados etc. (15%); as violências
psíquicas, com xingamentos e ofensas à conduta moral (18%),
críticas sistemáticas à atuação como mãe (18% entre as
que têm ou tiveram filhos), e a desqualificação constante
do seu trabalho, dentro ou fora de casa (12%). Mas 12% também
declaram ter sofrido ameaça de espancamento a si próprias e
aos filhos e 11% chegaram a sofrer espancamento, com cortes,
marcas ou fraturas. Há ainda 11% que viveram relações
sexuais forçadas (em sua maioria, o estupro conjugal, ainda
inexistente na legislação penal brasileira); 9% já ficaram
alguma vez trancadas em casa, impedidas de passear ou
trabalhar; 8% foram ameaçadas por armas de fogo e 6% sofreram
abuso, forçadas a práticas sexuais que não lhes agradavam.
A
projeção da taxa de espancamento (11%) para o universo
investigado (61,5 milhões) indica que pelo menos 6,8 milhões,
dentre as brasileiras vivas, já foram espancadas ao menos uma
vez na vida. Considerando-se que 31% declararam que a última
ocorrência foi no período dos 12 meses anteriores à
pesquisa, chega-se ao escândalo de cerca de 2,1 milhões de
mulheres espancadas por ano no país, 175 mil/mês, 5.800/dia,
243/hora ou 4/minuto – uma a cada 15 segundos.
VIOLÊNCIAS
SOFRIDAS, SEGUNDO MACRORREGIÃO,
LOCAL
DE CRESCIMENTO E MORADIA
(em
%)
MODALIDADES
DE
VIOLÊNCIA
|
Total
|
Macrorregião
|
Renda
familiar mensal
(em
S.M.)
|
Ascendência
racial
|
N/CO
|
NE
|
SUL
|
SE
|
Até
2
|
+
de 2 a 5
|
+
de 5 a 10
|
+
de 10
|
Branca
|
Branca,
indígena e negra /
Branca
e
indígena
|
Negra
e branca
|
Negra
|
Peso
do segmento
|
(100%)
|
(13%)
|
(27%)
|
(15%)
|
(45%)
|
(42%)
|
(34%)
|
(12%)
|
(8%)
|
(29%)
|
(21%)
|
(38%)
|
(6%)
|
SOFREU
VIOLÊNCIA
|
43
|
57
|
42
|
33
|
43
|
49
|
41
|
37
|
42
|
33
|
50
|
45
|
54
|
FÍSICA
|
33
|
42
|
32
|
27
|
33
|
39
|
31
|
27
|
26
|
26
|
38
|
34
|
43
|
Ameaças/
cerceamento
|
24
|
28
|
23
|
21
|
25
|
29
|
22
|
20
|
16
|
19
|
28
|
24
|
31
|
Impedida
de sair
|
9
|
10
|
8
|
9
|
9
|
10
|
8
|
7
|
6
|
7
|
9
|
9
|
11
|
Estupro/
Abuso Sexual
|
13
|
13
|
15
|
10
|
14
|
17
|
12
|
8
|
10
|
9
|
14
|
15
|
19
|
Relações
sexuais
forçadas
|
11
|
11
|
13
|
7
|
12
|
14
|
10
|
7
|
9
|
8
|
11
|
13
|
17
|
Agressão
|
22
|
28
|
19
|
19
|
23
|
27
|
19
|
17
|
14
|
17
|
23
|
23
|
31
|
Espancamento
|
11
|
12
|
10
|
12
|
12
|
14
|
11
|
9
|
4
|
8
|
13
|
12
|
17
|
PSÍQUICA
|
27
|
36
|
24
|
23
|
27
|
30
|
26
|
24
|
21
|
20
|
32
|
28
|
33
|
Insinuações
e xingamentos, com
ofensas à conduta sexual
|
18
|
23
|
15
|
16
|
18
|
20
|
16
|
18
|
15
|
14
|
20
|
18
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21
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ASSÉDIO
SEXUAL
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11
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8
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9
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12
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9
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9
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16
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8
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14
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12
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Base:
Total da amostra
Fonte: NOP / FPA
Entre
as mulheres que declaram já ter sofrido espancamento, 32%
afirmam que isso só aconteceu uma vez, mas outras 20% dizem
ter ocorrido 2 ou 3 vezes e 11% foram espancadas mais de 10 ou
“várias vezes”, além de 15% que não sabem dizer a
quantidade, mas o tempo em que ficaram expostas a esse tipo de
violência – dentre elas, 4% espancadas por “mais de 10
anos”, ou “durante toda a vida” (outras 4%).
Naturalmente, estamos falando das sobreviventes. E se somarmos
a isso o fato de que, a despeito dos procedimentos metodológicos
adotados para gerar um clima de confiança nas entrevistas,
certamente uma parcela das entrevistadas não deve ter
superado o medo ou o constrangimento da confissão, pode-se
concluir que o índice de uma
mulher espancada a cada 15 segundos no Brasil ainda oculta
parte da real extensão do problema.
O
mesmo pode-se dizer sobre as demais expressões da violência
contra a mulher que foram investigadas, as quais apontaram índices
igualmente obscenos: a cada 15 segundos uma brasileira é
impedida de sair de casa, também a cada 15 segundos outra é
forçada a ter relações sexuais contra sua vontade, a cada 9
segundos outra é ofendida em sua conduta sexual ou por seu
desempenho no trabalho doméstico ou remunerado. Esses dados
evidenciam que a violência contra a mulher no Brasil, longe
de ser um problema que deva estar restrito ao âmbito privado
dos casais, constitui um fenômeno social amplamente
difundido, a requerer políticas públicas de ampla difusão e
acesso – uma demanda a que a criação da Secretaria
Especial da Mulher, por parte do governo Lula, e o programa de
combate à violência doméstica anunciado no início de 2004,
vêm mais que oportunamente ao encontro.
A
responsabilidade do marido ou parceiro como principal agressor
varia entre 53% (ameaça à integridade física com armas) e
70% (quebradeira) das ocorrências de violência em
qualquer das modalidades investigadas, excetuando-se o assédio.
Outros agressores comumente citados são o ex-marido, o
ex-companheiro e o ex-namorado, que somados ao marido ou
parceiro constituem sólida maioria. O ciúme (muitas vezes da
mulher) desponta como a principal causa aparente detonadora da
violência, assim como o fato de o homem estar alcoolizado no
momento da agressão – ambos mencionados espontaneamente por
21%.
Atestando
a transversalidade do fenômeno, de modo geral as violências
declinam com o aumento da renda familiar e da escolaridade,
mas longe de desaparecerem: sob a forma explícita de agressão,
caem de 27%, contra as mulheres com renda familiar até 2 salários,
para 14% contra as com renda superior a 20 salários; sob
formas sexuais (estupro conjugal e abuso) variam de 17% a 10%,
nesses mesmos segmentos, e sob a forma de ameaças e
cerceamento vão de 29% a 16%; e a violência psíquica pouco
cai, indo de 30% para 21%, considerando-se os extremos da
escala de renda familiar.
Em
quase todos os tipos de violência, mais da metade das
mulheres não pede ajuda. Somente em casos considerados
graves, como ameaças com armas de fogo e espancamento, pouco
mais da metade das vítimas (55% e 53%, respectivamente)
recorre a alguém para ajudá-las - pedido que recai, via de
regra, sobre outra mulher da família, mãe ou irmã, ou sobre
uma amiga próxima. Os casos de denúncia pública são ainda
menos frequentes, ocorrendo mais diante de ameaça à
integridade física por armas de fogo (31%), espancamento
(21%) e ameaças de espancamento (19%). O órgão público
mais utilizado para denúncias é a delegacia de polícia
comum. A Delegacia da Mulher atinge a
5% nos casos de espancamento.
Dentre
seis propostas para uma política pública de combate à violência
contra a mulher sugeridas na pesquisa, a criação de abrigos
para mulheres agredidas e seus filhos foi a que mereceu maior
adesão (43% na primeira escolha, 74% na soma de três
respostas). A criação de Delegacias Especializadas no
atendimento às vítimas apareceu como segunda principal
medida (21% e 60%, respectivamente), seguida por serviços de
atendimento psicológico (12% e 51%), por um serviço telefônico
gratuito, tipo SOS Mulher (13% e 44%) e por serviços de
orientação jurídica para as mulheres agredidas (5% e 40%).
Em último lugar ficou a proposta de campanhas na TV e no rádio
contra a violência sofrida pela mulher (5% e 26%),
curiosamente a única de caráter preventivo, entre as medidas
investigadas, uma vez que as demais só intervém depois do
leite derramado.
É
certo que outras propostas poderiam ter sido testadas, como a
abordagem do problema nas escolas, desde o ensino fundamental,
seja em disciplina específica sobre direitos humanos e
cidadania, seja transversalmente em outras disciplinas. Mas o
fato de campanhas educativas na mídia terem sido a última
escolha das entrevistadas parece refletir não só a legítima
dramaticidade que o fenômeno desperta (ao menos quando
sucitado), favorecendo a opção da opinião pública por
alternativas “curativas”, como também a pouca maturidade
da discussão do problema em nossa sociedade. A dimensão do
fenômeno captada na pesquisa indica que, por necessárias e
importantes que sejam, as medidas de acolhimento das vítimas,
mesmo se implementadas em larga escala, serão insuficientes
se não for combatida a base moral que legitima e confere
naturalidade à violência contra a mulher, o que demanda uma
política educacional ativa de desconstrução/construção de
valores.
Uma
voz diferente[5]
Em
suma, erra muito quem, ao pensar nas mulheres brasileiras
hoje, visualiza a dona-de-casa, conformada e satisfeita com
sua dependência e submissão ao marido, ou a espera de um. Não
é assim que elas se vêem, não é assim que elas vivem. A
inserção no mercado de trabalho, conquista ou meta da
maioria das mulheres, é valorizada sobretudo por possibilitar
a construção de sua autonomia, ou ao menos por trazer
independência econômica em relação aos (seus) homens. Mas
também erra quem pensa só na trabalhadora, ou seja, na condição
da mulher apenas do ponto de vista das classes sociais. Como
vimos, já no mercado ou buscando entrar, a maioria das
brasileiras acumula o trabalho fora, remunerado, ao trabalho
doméstico não pago, a contragosto, suportando a experiência
estafante da dupla jornada – um dos traços mais característicos
de sua identidade de gênero.
Indagadas,
ainda no início da entrevista, sobre a primeira coisa que
fariam para que a vida de todas as mulheres melhorasse,
despontaram como principais respostas espontâneas o fim das
discriminações no mercado de trabalho (47%), a igualdade de
direitos (10%), o combate à violência contra as mulheres (9%); maior
liberdade (5%), menos machismo e mais reconhecimento por parte
dos homens (5%). Essas respostas constituem uma pauta específica
de preocupações, trazendo uma combinação de demandas que a
visão masculina hegemônica, vinda de outro lugar, tem
dificuldade de enxergar – demandas que só a experiência
concreta do universo feminino, em que cotidianamente se
entrelaçam um mundo público restrito e um mundo privado
opressor, poderia criar.
O
fato de que o movimento intenso das mulheres em direção ao
mercado de trabalho, constituindo-se como (co)provedoras das
famílias, não tem encontrado a contrapartida da equivalência
masculina na divisão do trabalho doméstico, bem como a
permanência de estigmas que reforçam a idéia de
inferioridade/incapacidade da mulher em diferentes âmbitos do
espaço público, sugerem que o conjunto da sociedade
brasileira e suas instituições não têm caminhado, ao menos
não com a mesma intensidade, que (parcelas amplas da) sua
metade feminina. Nesse sentido as mulheres têm sido o sujeito
ativo da mudança nas relações de gênero, beneficiárias
privilegiadas de suas conquistas, ao mesmo tempo em que arcam
com os principais custos que ela implica – a exemplo da violência
conjugal sofrida, muitas vezes claramente uma reação
masculina à perda de poder no âmbito da família.
Se
a pesquisa mostra que as brasileiras estão decididas a não
dar a volta atrás, recolhendo-se de novo em suas casas, ela
também indica que o horizonte do mundo público das mulheres
tem muito a ser ampliado. A
inserção no mercado de trabalho ainda é o principal caminho
que leva às experiências públicas, quando não o único, e
caracterizado pela precariedade (vínculo informal e baixos
salários). O mundo do poder político,
mesmo o das artes e do conhecimento, são pouco citados como
espaços concretos de ação feminina, ainda distantes da
realidade da maioria das mulheres no Brasil, ainda que os
dados indiquem disposição em conquistá-los. A concentração
de obrigações e responsabilidades no mundo privado, repostas
a cada dia, certamente dificulta a que se aventurem por outros
caminhos públicos, que exigem dedicação e experiência.
Para que as mulheres possam exercer sua cidadania com
igualdade de condições, portanto, ainda há muito que
percorrer e romper.
Ao
perseguirem sua autonomia, o respeito a sua dignidade e a sua
integridade física; ao tentar rearticular os espaços privado
e público em outros termos, transformando o primeiro e
ampliando sua inserção no outro; em suma, ao reivindicarem o
fim da opressão de gênero, sendo esta tão onipresente,
certamente as mulheres apontam não só para uma sociedade em
que elas possam
viver melhor, mas para um Brasil potencialmente menos injusto no
conjunto de suas relações sociais. Quanto aos homens,
sobretudo como majoritariamente responsáveis pela maioria das
instituições sociais, podem optar pelo status
quo ou contribuir para acelerar essas mudanças. O que os
dados sugerem é que não conseguirão resistir às transformações
nas relações de gênero que as mulheres brasileiras
provavelmente conquistarão muito antes de acabar o século
que se inicia.
*
Gustavo Venturi é
**
Marisol Recamán é da Fundação Perseu Abramo
Uma versão anterior e mais sintética deste texto foi
publicada na Revista Teoria
& Debate no 50, fev-abr/2002, sob o título
“Afinal, o que querem as mulheres?”. Este artigo é
uma síntese da pesquisa “A Mulher Brasileira nos Espaços
Público e Privado”, realizada pelo Núcleo de Opinião
Pública da Fundação Perseu Abramo
Em que pese a distância de quase dois anos e meio entre a
coleta dos dados e a redação desta introdução, os
resultados aqui analisados mantêm essencialmente sua
atualidade, posto que refletem traços estruturais da
realidade da condição feminina no Brasil e as percepções
das mulheres sobre essa realidade, pouco alterada nesse
período. Optamos, assim, como regra geral, por manter as
con jugações verbais do texto no modo presente,
excetuando-se a referência a dados sensíveis a mudanças
conjunturais, a exemplo da precisão da distribuição da
renda familiar medida em salários mínimos ou do acesso a
computador e Internet.
Não confundir com a totalidade dos domicílios
brasileiros, uma vez que, sendo as mulheres o universo
desta pesquisa, ficaram de fora os domicílios em que não
há mulheres.
Lei 10.224, de 15 de maio de 2001, introduziu no Código
Penal a seguinte redação: “Assédio sexual – art.
216-A. Constranger alguém com o intuito de obter vantagem
ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua
condição de superior hierárquico ou ascendência
inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função.”.....................
Título de livro da psicóloga social norte-americana,
Carol Gilligan, In a Different Voice (Harvard Univ.
Press, Londres, 1982), publicado no Brasil pela Editora
Rosa dos Tempos.
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