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Relatórios


Trabalho Escravo: Apresentação e dados de 2000

Pe. Ricardo Rezende Figueira*
e Nadejda Marques**


Como em outros países do Ocidente, no Brasil há uma escravidão ilegal, que busca se justificar através do pretexto de uma dívida. Nesse processo, o trabalhador é recrutado por um empreiteiro, denominado “gato”. O gato contrata verbalmente homens para executar tarefas como o roço e a derrubada de mata, a manutenção de pastos, a exploração de madeira, a produção do carvão vegetal, o cultivo do algodão, da cana-de-açúcar, do feijão ou de frutas. Os trabalhadores, iludidos com a possibilidade de obter algum dinheiro que lhes é prometido e, sem conhecer as condições reais do trabalho (quantidade de tempo necessária para executar as tarefas, qualidade do alojamento e alimentação, ou mesmo condições naturais como o clima), são levados para fazendas distantes de suas cidades, na maioria das vezes em outros estados, onde são forçados a aceitar exorbitantes dívidas com transporte, alimentação, ferramentas de trabalho, alojamento, entre outras. Além disso, os locais de trabalho são conhecidos pela falta de higiene, ausência de instalações sanitárias, inexistência de atendimento médico e de primeiros socorros. Endividados, os trabalhadores não podem deixar a fazenda, sendo vigiados por pistoleiros armados, que lhes impõem o terror e a humilhação. As condições para deixar a fazenda são: pagar toda a dívida (o que seria praticamente impossível), concluir a tarefa assumida pelo empreiteiro com seu patrão, ou a fuga. Se fugirem, as pessoas correm o risco de serem capturadas, surradas, levadas de volta ao trabalho, ou mesmo assassinadas. Em alguns casos, nem é preciso manter os trabalhadores por uso da força ou ameaças. A longa distância entre o lugar de origem do trabalhador e o local de trabalho, a falta de dinheiro para pagar o transporte e a retenção dos documentos pelo empreiteiro costumam impedir a fuga. Outra razão que pode desestimular a fuga é o não conhecimento de leis e de direitos por parte do trabalhador, que fica constrangido pelo peso moral da “dívida”, mesmo sendo ilegítima em termos legais.

Tradicionalmente, a utilização do trabalho escravo ou a super-exploração do trabalho era atribuída a falta de mão-de-obra em regiões distantes e de difícil acesso. No entanto, elementos que pareciam justificar a utilização de mão-de-obra escrava perderam força no contexto da nova ordem econômica mundial. A hegemonia neoliberal impõe uma “flexibilização” das relações de trabalho. Com isso, instituições, legislação e serviços que funcionavam para garantir a regulamentação e gerenciamento da força de trabalho têm sido desmantelados em detrimento da capacidade do Estado de proteger ampla e efetivamente os direitos essenciais da pessoa humana. Não é por acaso que a maioria das vítimas de trabalho escravo é composta por homens jovens, desempregados e analfabetos. Além disso, se tem notícia de que alguns trabalhadores são recrutados não uma, mas duas ou mais vezes para trabalhar em fazendas nas condições acima citadas. Esses trabalhadores fogem da fome e da miséria com a vã esperança de encontrarem um “gato” melhor, melhores condições de trabalho e possibilidade de ganho.

Segundo dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT), em 1998 foram detectados um total de 614 pessoas vítimas do trabalho escravo. Em 1999, esse total, que inclui adultos, crianças e adolescentes, sobe para 1.099, revertendo a então divulgada tendência de declínio nos casos conhecidos de trabalho escravo no país.[1] Embora os dados parciais para o ano de 2000 não estejam ainda disponíveis, essa tendência parece prosseguir, de acordo com dados do Grupo Especial de Fiscalização Móvel, segundo os quais até o primeiro semestre do ano 2000 já haviam sido libertas 418 pessoas.

A relação entre o uso de trabalho escravo e as precárias condições econômicas rurais se manifestam ainda na cumulação da prática de trabalho escravo com outros abusos no campo. Várias fazendas que valem-se da mão-de-obra escrava também estão envolvidas em conflitos de terra como, por exemplo, no caso Corumbiara onde o fazendeiro Antenor Duarte do Valle, além de acusado por testemunhas de ter participado do massacre que resultou na morte de nove sem terra no dia 9 de agosto de 1995, seria indiciado também por cárcere privado na fazenda São Lucas Tadeu.[2] Portanto, o Governo tem a obrigação de expropriar terras onde o uso de mão-de-obra escrava é constatado. Além disso, é necessário fazer uma reforma agrária ampla, profissionalizar os trabalhadores libertos, oferecer bolsa-escola para as crianças envolvidas em trabalho escravo, educar os pais dessas crianças e garantir que essas famílias tenham uma vida digna.

A exploração da mão-de-obra escreva atinge também os povos indígenas. Este ano, o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) denunciou a escravidão de 22 índios Xakriabá, prisioneiros em fazendas no estado de Goiás. Os Xakriabá haviam deixado sua aldeia em Minas Gerais, na esperança de conseguir trabalho em fazendas nos estados vizinhos.

Vale lembrar que dados sobre o trabalho escravo são conhecidos graças a denúncias feitas pelas vítimas, familiares, entidades não-governamentais, igrejas, sindicatos de trabalhadores rurais e pelo Ministério Público do Trabalho. Por essa razão, acredita-se que os dados existentes sejam muito subestimados. Não existem pesquisas amplas que determinem o total de casos existentes no país. Além disso, exploração do trabalho está de tal forma assimilada nas práticas empregatícias, que muitas vezes é difícil para as pessoas mais humildes reconhecerem que estão sendo exploradas ou submetidas à escravidão.

Apesar da maioria dos estudos e investigações no Brasil remeterem a casos de trabalho escravo na zona rural, essa prática também ocorre nos centros urbanos, atingindo principalmente trabalhadores estrangeiros. Outros grupos, vítimas da exclusão social e econômica estão sujeitos à prática do trabalho escravo nas cidades. Todavia, é ainda mais difícil avaliar a situação do trabalho escravo nas zonas urbanas, em razão da ausência de entidades dedicadas a esse tipo de pesquisa. Um exemplo conhecido é o caso de 31 trabalhadores da Paraíba e do Rio Grande do Norte que foram submetidos à servidão como vendedores de redes na rodovia Rio-Santos, através de mecanismo de endividamento.[3]

É preciso reconhecer que algumas ações foram tomadas pelo governo federal no combate à escravidão. Observa-se que, atualmente, órgãos do governo também têm denunciado a prática de trabalho escravo, somando-se aos esforços que antes eram praticamente restritos às igrejas e às entidades da sociedade civil. Nesse sentido, as medidas de maior impacto referem-se às ações do Grupo Especial de Fiscalização Móvel. Desde o início de suas atividades em 1995, até o primeiro semestre do ano 2000, o Grupo Especial de Fiscalização Móvel do Ministério do Trabalho divulgou ter libertado 1.834 trabalhadores.

Quadro Geral das Ações do Grupo Especial de Fiscalizações Móvel

Ano
Nº de Municípios
Estados
Nº de AI Lavrados
Trabalhadores Libertados
Nº de Operações
Estabelecimentos fiscalizados
1995
-------
MS (5), MT (2), MG (2), PA, RO, AL
959
150
12
83
1996
112
MS (2), MT (5), MG (3), PA (3), RO (2), MA (2), SP (5), PR (2), PE (2), PI, PB, ES, RJ
1758
288
28
237
1997
55
MS, MT (5), MG, PA (2), RO, MA (5), SP (2), RS, BA, SC, GO
808
220
21
129
1998
47
MT (3), PA (4), MA (8), SP, GO, DF
286
119
18
64
1999
36
MT (4), MG (2), PA (5), MA (2), SP, TO (3), GO
358
639
18
117
2000*
16
MT (3), MG, PA (4), RO, GO (2), CE
261
418
12
49
TOTAL
266
-------
4430
1834
109
679

Fonte: COPES/SIT/MTE *Dados do 1º Semestre de 2000.

No entanto, algumas ponderações caberiam em relação à atuação do Grupo Especial de Fiscalização Móvel. Durante um seminário internacional promovido pelo Ministério Público do Trabalho[4] em Belém, nos dias 6 e 7 de novembro, a CPT ressaltou a falta de coordenação entre o Ministério do Trabalho, o Ministério Público do Trabalho e o Ministério Federal, reforçando a constatação apresentada no relatório da Organização Internacional do Trabalho e da representação da Anti-Slavery International. Além disso, a CPT apontou restrições materiais e institucionais que comprometem a eficácia do Grupo Móvel. Entre essas dificuldades estão a obstrução dos trabalhos através da não liberação das verbas; a quebra do sigilo das operações; a falta de recursos como carros e helicópteros; a dependência de grupos locais, como Delegacias Regionais do Trabalho; a ruptura do comando único; e a falta de integração efetiva na operacionalização das missões, principalmente com a Polícia Federal (detalhes sobre as observações da CPT são relatados no texto a seguir).

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[1] Trabalho Escravo 1999. Fonte: Setor de Documentação/Secretaria Nacional da CPT; Conflitos no Campo – Quadro Comparativo (1991-1998). Conflitos no Campo Brasil 1998, Goiânia, setembro de 1999.

[2] Fazendeiro será indiciado por trabalho escravo. O Globo, 8/2/00, O País, p.11.

Massacre teve ajuda de jagunços. O Globo, 6/2/00, O País, p.3.

[3] Relatório de Atividades, Trabalho Forçado. Ministério Público do Trabalho, Procuradoria Geral, Brasília/DF, outubro de 2000.

[4] Seminário Internacional: Trabalho Forçado: Realidade a ser combatida. Belém, 6 e 7 de novembro, 2000.

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* Pe. Ricardo Rezende Figueira é escritor e presidente do Conselho Deliberativo do Centro de Justiça Global.

* Nadejda Marques é economista e colaboradora do Centro de Justiça Global.

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