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                    A criação das delegacias da mulher tem contribuído 
                    para a construção de uma cidadania de gênero 
                    no País, reconhecendo as posições sociais 
                    hierárquicas em função do sexo e promovendo 
                    a igualdade de direitos. As delegacias da mulher dão 
                    visibilidade à violência contra a mulher e dão 
                    coragem para que estas denunciem a violência que sofrem 
                    em silêncio e que não era levada a sério 
                    pelos distritos policiais. 
                  Delegacias 
                    da Mulher em São Paulo:  
                    Percursos e Percalços 
                  Cecília 
                    MacDowell Santos*        
                  Breve 
                    histórico 
                   
                    As delegacias da mulher constituem a principal política 
                    pública de combate e prevenção à 
                    violência contra a mulher no Brasil. A primeira delegacia 
                    deste tipo, inédita no país e no mundo, surgiu 
                    em 1985 na cidade de São Paulo durante o governo Franco 
                    Montoro. Foi fruto do contexto político de redemocratização, 
                    bem como dos protestos do movimento de mulheres contra o descaso 
                    com que o Poder Judiciário e os distritos policiais 
                     em regra, lotados por policiais do sexo masculino  
                    lidavam com casos de violência doméstica e sexual 
                    nos quais a vítima era do sexo feminino. Atualmente, 
                    existem 124 delegacias da mulher no estado de São Paulo, 
                    com nove na capital. O país conta com 307 delegacias 
                    da mulher, ressalvando-se o fato de que o total de municípios 
                    com esse tipo de delegacia não chega a 10%. 
                   
                    Portanto, é de se notar a concentração 
                    das delegacias da mulher em São Paulo (40,7%) e a distribuição 
                    desigual das mesmas no interior dos demais estados.1  
                   
                    A história das delegacias da mulher deve ser remetida 
                    à história do movimento de mulheres em torno 
                    da politização da violência contra a mulher. 
                    A partir de meados dos anos 70, o movimento de mulheres começou 
                    a denunciar amplamente a absolvição, pelos tribunais 
                    do júri, dos autores de homicídios de mulheres. 
                    No início dos anos 80, surgiam grupos feministas em 
                    todo o país, denominados SOS-Mulher, voltados ao atendimento 
                    jurídico, social e psicológico de mulheres vítimas 
                    de violência. A então forte e bem sucedida politização 
                    da temática da violência contra a mulher pelo 
                    SOS-Mulher e pelo movimento de mulheres em geral fez com que, 
                    em São Paulo, o Conselho Estadual da Condição 
                    Feminina, também criado no governo Franco Montoro em 
                    1983, priorizasse essa temática, entre outras. O Conselho 
                    propunha então a formulação de políticas 
                    públicas que promovessem o atendimento integral às 
                    vítimas de violência, abrangendo as áreas 
                    de segurança pública e assistências social 
                    e psicológica. 
                   
                    O governo Montoro respondeu às propostas do Conselho 
                    com a idéia inusitada de uma delegacia especializada 
                    em crimes contra a mulher, lotada por policiais do sexo feminino. 
                    A idéia, que restringiu a perspectiva feminista da 
                    violência contra a mulher ao seu aspecto meramente criminal, 
                    partiu do então Secretário de Segurança 
                    Pública, Michel Temer. Na época, vários 
                    delegados de polícia se manifestaram contra a criação 
                    das delegacias da mulher. Mas o governo venceu a resistência 
                    da polícia civil e criou a primeira Delegacia de Polícia 
                    de Defesa da Mulher mediante o Decreto Nº 23.769/85.2 
                     
                   
                    Embora desconfiadas da polícia e do estado em geral 
                    pelo seu passado recente de autoritarismo, as feministas integrantes 
                    do Conselho Estadual da Condição Feminina de 
                    São Paulo e de alguns grupos de mulheres atuando no 
                    combate à violência contra a mulher apoiaram 
                    a iniciativa inédita do governo Montoro. Mas, desde 
                    1985, vêm tentando influir, com mais ou menos sucesso, 
                    na capacitação das policiais e na delimitação 
                    das atribuições das delegacias da mulher. 
                   
                    Desse modo, desde o seu nascedouro, a concepção 
                    e as atribuições das delegacias da mulher, assim 
                    como a formação cultural dos/as policiais, têm 
                    sido resultado de conflitos e negociações entre 
                    organizações feministas  governamentais 
                    e não-governamentais, a polícia civil e as policiais 
                    titulares das delegacias da mulher.3  
                    
                  Atribuições 
                    e funcionamento 
                   
                    O Decreto Nº 23.769/85, que criou a primeira delegacia 
                    da mulher na Secretaria de Segurança Pública 
                    de São Paulo, estabeleceu a competência dessa 
                    delegacia especializada para investigar e apurar, entre outros, 
                    delitos de lesão corporal, ameaça, constrangimento 
                    ilegal, atentado violento ao pudor, adultério, etc. 
                    Desde 1985, lesão corporal e ameaça constam 
                    como os tipos de crimes mais registrados nas delegacias da 
                    mulher em São Paulo e nos demais estados. Mas o número 
                    de inquéritos policiais é sensivelmente desigual 
                    para os dois tipos de crimes. Em 1994, por exemplo, as delegacias 
                    da mulher de São Paulo registraram um total de 114.832 
                    boletins de ocorrência, dos quais 33% eram por lesão 
                    corporal e 26% por ameaça. Enquanto 71,3% dos boletins 
                    por lesão corporal originaram inquéritos policiais, 
                    apenas 7,9% dos boletins por ameaça deram lugar a inquéritos.4 
                     
                   É 
                    interessante notar que, apesar de já em 1985 o Conselho 
                    Estadual da Condição Feminina reivindicar a 
                    inclusão do delito de homicídio, este não 
                    foi contemplado pelo decreto. Somente em 1996, passados mais 
                    de dez anos desde a criação da delegacia pioneira, 
                    tal delito se inseriu na competência das delegacias 
                    da mulher. Vale também observar que a criação 
                    da delegacia especializada em crimes contra a mulher não 
                    excluíu dos distritos policiais a competência 
                    para, concorrentemente, investigarem e apurarem aqueles crimes. 
                    Na prática, porém, tornou-se regra os policiais 
                    nos distritos "empurrarem" as queixosas para as 
                    delegacias da mulher.  
                   
                    Também merece destaque o fato de que, ao contrário 
                    dos distritos policiais, as delegacias da mulher não 
                    dispõem de cadeia e, portanto, não realizam 
                    serviço de carceragem. Na capital, apenas uma delegacia 
                    da mulher tem prédio próprio e funciona 24 horas, 
                    inclusive nos fins de semana e feriados. As demais delegacias 
                    da mulher operam no prédio de um distrito policial 
                    e funcionam somente em dias úteis, das 8 horas da manhã 
                    até as 6 horas da tarde. 
                   
                    Saliente-se ainda que, desde 1985, nenhuma legislação 
                    referente a delegacias da mulher tem feito menção 
                    à formação ou capacitação 
                    das policiais titulares dessas delegacias. Os poucos cursos 
                    de capacitação sob a perspectiva de gênero, 
                    oferecidos às policiais pelo Conselho Estadual da Condição 
                    Feminina e por algumas ONGs de mulheres, têm sido resultado 
                    da vontade política de algumas policiais em postos 
                    de coordenação dos trabalhos das delegacias. 
                    A Academia de Polícia, responsável pelo curso 
                    preparatório de três meses destinado a todos 
                    os policiais que ingressam na carreira, jamais integrou em 
                    seu curriculum um curso específico sobre violência 
                    contra a mulher ou violência de gênero.  
                   
                    Entre 1985 e 1986, na gestão Montoro, criaram-se 13 
                    delegacias da mulher. Na gestão seguinte de Orestes 
                    Quércia, entre 1987 e 1990, esse número cresceu 
                    para 58. Devido à expansão dessas delegacias, 
                    criou-se, em 1989, uma Assessoria Especial das Delegacias 
                    de Defesa da Mulher (hoje denominada Serviço Técnico 
                    de Apoio às Delegacias de Polícia de Defesa 
                    da Mulher  DGP), cujas integrantes são designadas 
                    pelo Delegado Geral de Polícia, com o fim de assessorá-lo 
                    e manter relacionamento direto com as policiais titulares 
                    das delegacias da mulher. Em 1989, ampliou-se também 
                    a competência das delegacias da mulher, com a inclusão 
                    dos crimes contra a honra, tais como calúnia, injúria 
                    e difamação, e o crime de abandono mateiral 
                    (Decreto Nº 29.981/89). 
                   
                    A grande mudança, porém, nas atribuições 
                    das delegacias da mulher, teve lugar no primeiro governo Mário 
                    Covas. Em 1996, o Decreto Nº 40.693/96 não apenas 
                    ampliou as atribuições das delegacias da mulher, 
                    mas também deu-lhes nova caracterização. 
                    Além dos crimes contra a mulher, essas delegacias passaram 
                    também a investigar e apurar os delitos contra a criança 
                    e o adolescente, previstos no Estatuto da Criança e 
                    do Adolescente. A essas delegacias coube, ainda, apurar mais 
                    crimes contra a mulher, como, por exemplo, homicídio 
                    ocorrido no âmbito doméstico e de autoria conhecida. 
                    Por outro lado, sua competência extendeu-se aos crimes 
                    de aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento, 
                    aborto provocado por terceiro e infanticídio, entre 
                    outros crimes adicionais. Nesses casos, a mulher passou de 
                    vítima a criminosa, as delegacias da mulher não 
                    mais servindo-lhe necessariamente de "defesa".  
                   
                    Interessante notar que, por ocasião de um debate sobre 
                    a expansão das atribuições das delegacias 
                    da mulher, realizado na Assembléia Lesgilativa de São 
                    Paulo no início de 1996, tive a oportunidade de observar 
                    que muitas delegadas titulares de delegacias da mulher, temendo 
                    a extinção de tais delegacias, defenderam a 
                    farta ampliação de sua competência, inclusive 
                    com o acréscimo de crimes de aborto e infanticídio. 
                   
                    Essas mudanças de atribuições e as posições 
                    das delegadas devem ser compreendidas em um contexto mais 
                    amplo de política da administração da 
                    justiça criminal. Em 26 de setembro de 1995, foram 
                    criados os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, com 
                    o objetivo de informalizar a justiça, tornando-a mais 
                    célere e eficiente (Lei Nº 9.099/95). Os Juizados 
                    Especiais Criminais foram também idealizados para substituir 
                    penas repressivas por penas alternativas (compensações 
                    pecuniárias, serviços comunitários e 
                    conciliações) no caso de "infrações 
                    penais de menor potencial ofensivo". Consideram-se tais 
                    infrações os crimes e contravenções 
                    com pena inferior a um ano de detenção. Nesses 
                    casos, o inquérito policial foi substituído 
                    por um "Termo Circunstanciado", uma espécie 
                    de inquérito simplificado com um resumo da ocorrência, 
                    acompanhado do laudo pericial, quando necessário, devendo 
                    tal Termo ser remetido ao Juizado para realização 
                    de audiência de conciliação e julgamento. 
                     
                   
                    Os Juizados Especiais Criminais tiveram, e continuam tendo, 
                    uma série de consequências sobre os distritos 
                    policiais e as delegacias da mulher. No primeiro caso, serviram 
                    para "desafogar" os distritos. No tocante às 
                    delegacias da mulher, retiraram destas o papel de mediação 
                    de uma série de conflitos que compõem a grande 
                    maioria das queixas ali processadas, dando novo sentido a 
                    sua criminalização.5 Isto porque os delitos 
                    de lesão corporal (de natureza leve) e ameaça, 
                    cujas penas são inferiores a um ano, continuaram sendo 
                    os mais registrados nas delegacias da mulher. No ano 2000, 
                    por exemplo, do total de 310.058 boletins de ocorrência 
                    e termos circunstanciados efetuados nas delegacias da mulher 
                    de São Paulo, 25% corresponderam a lesão corporal 
                    e 20% ao delito de ameaça. Infelizmente, os dados disponíveis 
                    desde 1996 não desagregam boletins de ocorrência 
                    e termos circunstanciados, não se tendo acesso tampouco 
                    ao número de inquéritos policiais. Os dados 
                    também não indicam se as ocorrências por 
                    lesão corporal são de natureza leve ou grave.6 
                    Mas delegadas titulares das delegacias da mulher e o juiz 
                    titular do único Juizado Especial Criminal instalado 
                    em São Paulo, no Foro de Itaquera, estimam que a maior 
                    parte dos registros nas delegacias da mulher são encaminhados 
                    aos Juizados Especiais Criminais.7  
                   
                    A Lei Nº 9.099/95 tem recibido várias críticas 
                    por parte de militantes feministas, pesquisadores e policiais.8 
                    No Juizado, os juízes em geral são do sexo masculino 
                    e não recebem qualquer treinamento para lidar com a 
                    problemática específica da violência contra 
                    a mulher. A conciliação é utilizada como 
                    um fim, não como um meio de solução do 
                    litígio. Através da promoção de 
                    um acordo com renúnica do direito de representação, 
                    ou da aplicação de penas alternativas, que resultam 
                    em geral na distribuição de cestas básicas 
                    ou prestação de trabalhos comunitários 
                    não relacionados à violência contra a 
                    mulher, tal violência passa a ser banalizada e a justiça 
                    se torna questionável, dando azo à impunidade. 
                     
                   
                    Outra mudança importante nas atribuições 
                    das delegacias da mulher de São Paulo deu-se em 1997, 
                    com a promulgação do Decreto Nº 42.082/97, 
                    que veio conferir a essas delegacias competência para 
                    "o cumprimento dos mandados de prisão civil por 
                    dívida do responsável pelo inadimplemento voluntário 
                    e inescusável de obrigação alimentícia". 
                    O cumprimento desses mandados tem aumentado o trabalho das 
                    investigadoras de polícia e tem também incentivado 
                    a transferência de investigadores do sexo masculino 
                    para as delegacias da mulher. 
                   
                    Para limitar a entrada dos policiais do sexo masculino nas 
                    delegacias da mulher, o Delegado Geral de Polícia baixou 
                    a Portaria DGP Nº 11/97, estabelecendo que "Às 
                    Delegacias de Defesa da Mulher deverão ser designadas, 
                    preferencialmente, policiais civis do sexo feminino, principalmente 
                    para o exercício das funções relacionadas 
                    ao atendimento público". Ainda assim, é 
                    comum investigadores de polícia integrarem e chefiarem 
                    as equipes nas delegacias da mulher da capital, atendendo, 
                    inclusive, ligações telefônicas do público. 
                    As delegadas não se queixam da presença masculina, 
                    ao contrário, consideram-na necessária para 
                    melhor cumprimento de suas funções.  
                   
                    Vale observar a influência de papéis de gênero 
                    na ocupação dos três cargos policiais 
                    de delegado, escrivão e investigador. Até abril 
                    de 1999, 12,5% dos delegados de polícia no estado de 
                    São Paulo eram do sexo feminino; 45,5% dos escrivãos 
                    eram mulheres; e apenas 9,3% dos investigadores eram mulheres.9 
                    Dos três cargos, o investigador é o que mais 
                    realiza trabalho "de rua", expondo-se à reação 
                    violenta de homens indiciados. O trabalho dos escrivãos 
                    é interno e administrativo, mais associado ao papel 
                    feminino de secretariado, o que permite maior acesso das mulheres 
                    a essa função. As funções dos 
                    delegados, no entanto, que detêm maior poder na delegacia, 
                    continuam sendo associadas ao papel masculino.  
                    
                  Contribuições 
                    à cidadania de gênero  
                   
                    A despeito de muitos obstáculos, a criação 
                    das delegacias da mulher em São Paulo, e provavelmente 
                    em todo o Brasil, tem contribuído para a construção 
                    de uma cidadania de gênero no país, cidadania 
                    essa que reconhece as posições sociais hierárquicas 
                    em função do sexo e promove a igualdade de direitos, 
                    incluindo-se aqui o direito a ter direitos e o direito de 
                    acesso à justiça.  
                   
                    Em primeiro lugar, as delegacias da mulher dão visibilidade 
                    à violência contra a mulher. A inauguração 
                    da primeira delegacia da mulher, em 6 de agosto de 1985, atraíu 
                    enorme atenção da mídia nacional e inclusive 
                    internacional, inspirando a criação de outras 
                    delegacias similares em todo o país e inclusive no 
                    exterior. Na América Latina, treze países já 
                    contam com delegacias da mulher e da criança. Desde 
                    o início, essa invenção brasileira mostrou 
                    que o problema da violência contra a mulher no país 
                    era a regra, não a exceção, tornando 
                    público um fenômeno que era visto como privado 
                    e até normal.  
                   
                    Segundo a primeira delegada titular da primeira delegacia 
                    da mulher, Dra. Rosmary Corrêa, no dia seguinte à 
                    inauguração havia uma fila de 500 mulheres na 
                    porta da delegacia. Assim, esse novo canal institucional voltado 
                    especificamente às mulheres deu-lhes coragem para denunciar 
                    a violência que sofriam em silêncio ou que, quando 
                    denunciada, não era levada a sério pelos distritos 
                    policiais. Em 1984, por exemplo, um ano antes da criação 
                    da primeira delegacia da mulher, os distritos policiais no 
                    município de São Paulo registraram cerca de 
                    3.000 ocorrências oriundas de queixas de mulheres vítimas 
                    de violência, ao passo que a primeira delegacia da mulher 
                    registrou, sozinha, entre agosto de 1985 e agosto de 1986, 
                    cerca de 7.000 ocorrências e atendeu 65.000 mulheres. 
                     
                   
                    Desde então, o número de ocorrências registradas 
                    aumentou em progressão geométrica. Isso fez 
                    com que o Brasil fosse considerado campeão de violência 
                    contra a mulher durante a IV Conferência Mundial sobre 
                    a Mulher, promovida pelas Nações Unidas em Beijing 
                    em 1995. A violência contra a mulher no Brasil tem-se 
                    tornado cada vez mais visível e o número de 
                    denúncias continua crescendo. No ano 2000, por exemplo, 
                    foram registrados 310.058 boletins de ocorrência e termos 
                    circunstanciados nas delegacias da mulher de São Paulo. 
                    Convém lembrar, todavia, que esse elevado número 
                    não significa necessariamente maior incidência 
                    de violência. O maior número de delegacias da 
                    mulher e a ampliação crescente de suas atribuições 
                    provavelmente incentivam a denúncia e desnudam um fato 
                    social que sempre existiu.  
                   
                    Em segundo lugar, a criação de delegacias da 
                    mulher abriu um novo mercado de trabalho para policiais do 
                    sexo feminino, contribuindo assim para maior representatividade 
                    da mulher no sistema de justiça criminal. Até 
                    1985, contavam-se 15 delegadas de polícia no estado 
                    de São Paulo. Até fevereiro de 1999, o número 
                    de delegadas chegou a 388. Ainda assim, predominam os policiais 
                    do sexo masculino, em número de 3.102, como é 
                    regra na magistratura, no Congresso Nacional e nos mais altos 
                    cargos do Executivo.10  
                    
                  Obstáculos 
                    à cidadania de gênero  
                   
                    As delegacias da mulher encontram, porém, uma série 
                    de obstáculos para a ampliação do acesso 
                    à justiça e a construção de uma 
                    cidadania de gênero no Brasil. Em primeiro lugar, o 
                    fato de haver mais mulheres na polícia não garante 
                    maior sensibilidade e capacitação para lidar 
                    com violência conjugal, estupro dentro e fora do casamento, 
                    violência contra mulheres negras, violência policial 
                    contra prostitutas, violência contra idosas, violência 
                    contra lésbicas, assédio sexual, violência 
                    contra crianças, enfim, toda uma gama de violências 
                    sofridas por mulheres de variadas classes sociais, origens 
                    étnicas e raciais, orientações sexuais, 
                    idades, etc. A falta de institucionalização 
                    de cursos de capacitação sob a perspectiva de 
                    gênero, raça, classe e orientação 
                    sexual é um dos maiores obstáculos à 
                    mudança social potencialmente advinda da criação 
                    de delegacias da mulher. Esse é um obstáculo 
                    político que só poderá ser vencido com 
                    a tenaz mobilização de organizações 
                    não-govermentais de mulheres e das policiais que porventura 
                    tiveram acesso a cursos de capacitação na ótica 
                    de gênero.  
                   
                    Em segundo lugar, as delegacias da mulher enfrentam discriminação 
                    e preconceito dentro da própria polícia, tanto 
                    por parte de policiais do sexo masculino quanto de policiais 
                    do sexo feminino. Desde o seu nascedouro, essas delegacias 
                    foram alvo de escárnio. Certa vez, uma delegada titular 
                    da primeira delegacia da mulher observou, de sua janela no 
                    primeiro andar, um delegado que passava na calçada 
                    cuspindo na placa da delegacia. A instituição 
                    policial é marcada por hierarquias e por uma cultura 
                    de hierarquização. Embora a lei não estabeleça 
                    hierarquias entre os funcionários das delegacias da 
                    mulher e dos distritos policiais, não raro as delegacias 
                    da mulher são vistas como de valor inferior. Na visão 
                    de muitos policiais, essas delegacias fazem mais um serviço 
                    "social" do que propriamente policial. Consequentemente, 
                    para esses policiais, os crimes ali apurados não são 
                    "verdadeiros" crimes.11  
                   
                    Além dessas limitações culturais, as 
                    delegacias da mulher enfrentam obstáculos típicos 
                    de todo o aparato policial e judiciário. Há 
                    precariedade material e de recursos humanos. No âmbito 
                    material, somente as delegacias da mulher da capital dispõem 
                    de computadores e estes não funcionam em rede. A maior 
                    parte das viaturas não está equipada com rádio. 
                    Nenhuma delegacia da mulher possui terminais para consulta 
                    de antecedentes criminais. Quanto a recursos humanos, faltam 
                    escrivãs de polícia. Algumas delegadas acumulam 
                    funções com outras delegacias. Faltam casas-abrigo, 
                    comprometendo-se a segurança da mulher e das crianças 
                    em risco de vida.12 O estado de São Paulo dispõe 
                    apenas de uma casa-abrigo, o COMVIDA, com capacidade para 
                    cerca de 30 mulheres, acompanhadas de seus filhos.  
                   
                    Igualmente típico de todo o sistema de justiça 
                    criminal, a maior parte das ocorrências (menos de 20%) 
                    não dão lugar a inquéritos policiais. 
                    A impunidade é assim dissimulada por uma aparência 
                    de justiça. Com a criação dos Juizados 
                    Especiais Criminais, o número de inquéritos 
                    ficou ainda mais reduzido e a questão da impunidade 
                    ganhou maior destaque.  
                   
                    Sem menosprezar o debate necessário acerca dos efeitos 
                    dos Juizados Especiais Criminais na qualidade de justiça 
                    produzida, há que se perguntar se a criminalização 
                    da violência contra a mulher é realmente a melhor 
                    solução para todas as formas de violência, 
                    como, por exemplo, a violência conjugal, a violência 
                    racial contra mulheres, a violência policial contra 
                    prostitutas, a discriminação por orientação 
                    sexual, etc. Uma vez que cada uma dessas formas de violência 
                    envolve diferentes tipos de relações sociais, 
                    a compreensão das mesmas e sua solução 
                    devem ser igualmente diferenciadas. 
                   
                    Por outro lado, não se pode perder de vista que a criminalização, 
                    mesmo não sendo eficaz, funciona como ameaça 
                    e poder simbólico do estado para neutralizar a diferença 
                    de poder que está na base das variadas formas de violência 
                    contra a mulher. Ademais, mesmo que o poder neutralizante 
                    do estado não seja eficiente para coibir de todo essas 
                    violências, o mero fato de existirem delegacias da mulher 
                    contribui para a construção de uma identidade 
                    de gênero, gera uma certa auto-confiança nas 
                    mulheres e lhes permite a articulação de um 
                    certo senso de direitos.13Em um país marcado por graves 
                    violações de direitos humanos como é 
                    o caso do Brasil, essa pequena semente de cidadania não 
                    pode ser desprezada. 
                  -------------------------------------------------------------------- 
                    
                  *Professora 
                    de Sociologia da University of San Francisco  EUA. 
                  1 
                    Ver Conselho Nacional dos Direitos da Mulher. "Relatório 
                    Final da Pesquisa Nacional sobre as Condições 
                    de Funcionamento das Delegacias Especializados no Atendimento 
                    às Mulheres", 2000. 
                   
                    2 A denominação das delegacias da mulher não 
                    é uniforme em todo o país. No Rio de Janeiro, 
                    por exemplo, são denominadas Delegacias Especializadas 
                    no Atendimento à Mulher. No Rio Grande do Norte, são 
                    chamadas de Delegacias Especializada em Defesa da Mulher. 
                  3 
                    Analiso essas negociações e relações 
                    conflituosas em minha tese de doutorado intitulada "The 
                    State, Feminism, and Gendered Citizenship: Constructing Rights 
                    in Womens Police Stations in São Paulo." 
                    University of California at Berkeley, 1999. Ver também 
                    SANTOS, Maria Cecilia MacDowell dos. "Cidadania de Gênero 
                    Contraditória: Queixas, Crimes e Direitos na Delegacia 
                    da Mulher em São Paulo". In: AMARAL JÚNIOR, 
                    Alberto do, PERRONE-MOISÉS, Cláudia (orgs.). 
                    O Cinquentenário da Declaração Universal 
                    dos Direitos do Homen. São Paulo: Edusp, 1999. 
                  4 
                    Dados da Assessoria Especial das Delegacias de Polícia 
                    de Defesa da Mulher do Estado de São Paulo, hoje denominada 
                    Serviço Técnico de Apoio às Delegacias 
                    de Polícia de Defesa da Mulher  DGP. Sobre o 
                    número de ocorrências em outros estados, ver 
                    Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, op. cit. Ver também 
                    AMARAL, Célia Chaves Gurgel do, LETELIER, Celinda Lílian, 
                    GÓIS, Ivoneide Lima e AQUINO, Sílivia de. Dores 
                    Visíveis: Violência em Delegacias da Mulher no 
                    Nordeste. Edições REDOR/NEGIF/UFC, 2001. 
                  5 
                    Sobre o papel mediador das delegacias da mulher, ver BRANDÃO, 
                    Elaine Reis, "Violência conjugal e recurso feminino 
                    à polícia". In: BRUSCHINI, Crisitna e HOLLANDA, 
                    Heloísa Buarque de (orgs.). Horizontes Plurais: novos 
                    estudos de gênero no Brasil. São Paulo: Editora 
                    34; Fundação Carlos Chagas, 1998. Ver ainda 
                    MUNIZ, Jacqueline. "Os direitos dos outros e outros direitosL 
                    um estudo sobre a negociação de conflitos nas 
                    DEAMs/RJ". In: SOARES, Luiz Eduardo (org.). Violência 
                    e política no Rio de Janeiro. Rio de JaneiroL ISER/Relumé, 
                    1996. Sobre o papel de "recriminalização" 
                    da Lei Nº 9009/96, ver CAMPOS, Carmen Hein. "Violência 
                    doméstica no espaço da lei". In: BRUSCHINI, 
                    Crisitna e PINTO, Céli Regina (orgs.). Tempos e lugares 
                    de gênero. São Paulo: Editora 34; Fundação 
                    Carlos Chagas, 2001. 
                  6 
                    Dados do Serviço Técnico de Apoio às 
                    Delegacias de Polícia de Defesa da Mulher _ DGP. Igualmente 
                    inexistente é a anotação de dados sobre 
                    as vítimas e agressores, o que se fazia até 
                    1994. 
                  7 
                    Nos demais foruns da capital, os juízes e funcionários 
                    das varas criminais vêm acumulando funções 
                    e atuando em Juizados Especiais Criminais improvisados nas 
                    próprias varas. Não há dados sobre a 
                    movimentação desses Juizados em São Paulo. 
                    Em Porto Alegre, CAMPOS (op. cit.) aponta que os Juizados 
                    Criminais são responsáveis pela "grande 
                    movimentação processual da Justiça Penal" 
                    e que setenta por cento dos processos julgados em 1998 referiram-se 
                    à violência doméstica e à violência 
                    contra a mulher.  
                  8 
                    Além do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, op. 
                    cit., ver CAMPOS, op. cit., bem como MELO, Mônica de. 
                    "Juizado especial criminal e o acesso à justiça 
                    da mulher vítima de violência." Monografia 
                    que recebeu o Prêmio "Procuradoria Geral do Estado 
                    de São Paulo _ 2000". 
                  9 
                    Ver MASSUNO, Elizabeth. "Violência de gênero: 
                    delegacia de defesa da mulher, é necessária?" 
                    Núcleo de Estudos da Mulher e Relações 
                    Sociais de Gênero _ NEMGE-USP, 1999. 
                  10 
                    Ver MASSUNO, op. cit. 
                  11 
                    Ver minha tese de doutorado, supra citada, e SANTOS, op. cit. 
                     
                  12 
                    Ver MASSUNO, op. cit. 
                  13 
                    Nesse sentido, ver minha tese de doutorado, supra citada, 
                    assim como BRANDÃO, op. cit. e MUNIZ, op. cit. 
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