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Relatórios


Parece absurdo uma juíza exigir prova de vínculo empregatício de trabalhadores em uma fábrica clandestina, mas assim funciona a justiça em Santo Antonio de Jesus. Toda a situação ilegal das fábricas de fogos de artifício—que não cumprem as leis trabalhistas e nem sequer possuem registros como empresas—acabou por isentar o empresário Oswaldo Bastos Prazeres de sua responsabilidade de indenizar os sobreviventes e as famílias de 64 pessoas mortas.

A Quem Pertence a Justiça?

Aton Fon Filho[1] e Maria Luisa Mendonça[2]     

No dia 11 de dezembro de 1998, uma explosão em uma fábrica clandestina de fogos de artifício em Santo Antônio de Jesus, na Bahia, causou a morte de 62 mulheres e duas crianças. Desde então, os familiares das vítimas esperam uma decisão judicial sobre a responsabilidade pelas mortes e pelas lesões corporais dos sobreviventes da explosão.

Pressionadas pela ação de familiares de vítimas da explosão, depois que uma equipe de pesquisadores e fotógrafos da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos documentou a existência de quatro fábricas clandestinas de fogos de artifício em Santo Antônio de Jesus, o Ministério do Exército, finalmente, realizou algumas buscas na região, buscando localizar os pontos de funcionamento das fábricas e constatar as irregularidades apontadas.

Apesar disso, o empresário Oswaldo Bastos Prazeres, acusado pela explosão e pela produção ilegal de fogos de artifício na região, continua a manter essa atividade, valendo-se para tanto quer da pressão que a fome exerce sobre os moradores da região, quer das próprias autoridades e das leis, que preferem ameaçar e punir os trabalhadores que buscar os responsáveis pela exploração da atividade.

As denúncias sobre essa prática têm sido divulgadas principalmente por entidades locais como o Fórum de Direitos Humanos de Santo Antonio de Jesus e o Movimento 11 de Dezembro, formado por familiares das vítimas e sobreviventes da explosão. As fábricas empregam preferencialmente mulheres e crianças, burlando a fiscalização da Secretaria Regional do Trabalho.

Uma das organizadoras desse movimento é a Sra. Maria Madalena, que perdeu suas três filhas na explosão. Ela e outros familiares das vítimas passaram a receber ameaças de morte, após apresentarem denúncias sobre o caso ao Ministério Público. Desde então, três processos foram instaurados, na área cível, criminal e trabalhista. Nas ações civis e criminais, o dono da fábrica, Oswaldo Bastos Prazeres, tem conseguido se utilizar de diversos mecanismos jurídicos para protelar a conclusão do processo. A ação trabalhista foi julgada em primeira instância, sendo que a juíza Esmeralda Simões Marinez negou o pedido de indenização das vítimas, alegando que elas não conseguiram provar vínculo empregatício.

Parece absurdo uma juíza exigir prova de vínculo empregatício de trabalhadores em uma fábrica clandestina, mas assim funciona a justiça em Santo Antonio de Jesus. Toda a situação ilegal das fábricas de fogos de artifício—que não cumprem as leis trabalhistas e nem sequer possuem registros como empresas—acabou por isentar o empresário Oswaldo Bastos Prazeres de sua responsabilidade de indenizar os sobreviventes e as famílias das 64 pessoas mortas.

Enquanto isso, os familiares e sobreviventes procuram manter a organização de suas comunidades. Uellington dos Santos, que tinha 15 anos na época da explosão, trabalha hoje com o Fórum de Direitos Humanos de Santo Antonio de Jesus e espera uma indenização para tratar as enormes cicatrizes que cobrem suas pernas, suas costas e seu tronco. Seu irmão, Bruno, hoje com 13 anos, ainda sofre com a dificuldade de cicatrização das feridas em suas pernas e em suas costas, causadas pela explosão. Uellingon e Bruno vivem com mais oito irmãos em um pequeno cômodo na periferia da cidade.

A situação de extrema pobreza dessas comunidades obriga a população a se submeter ao trabalho extremamente perigoso nas fábricas de fogos de artifício. Além da situação de risco, esses trabalhadores recebem salários miseráveis. Eles contam, por exemplo, que recebem 50 centavos pela produção de mil traques (pequenos pedaços de pólvora embrulhados em papel).

Além da pobreza e da dor da perda de pessoas queridas, essas comunidades têm a sensação de que a justiça é um objetivo distante. Apesar disso, elas se organizam e contam com um sentimento que mais parece teimosia do que esperança. Imagino que esse sentimento é que move uma mãe que perdeu três filhas ou um adolescente que corre o risco de perder a perna. Diante deles, eu me pergunto: a quem pertence a justiça?

Com o apoio da Rede Social, o Movimento Onze de Dezembro e o Fórum de Direitos Humanos de Santo Antônio de Jesus movem na Justiça Federal, em Salvador, uma ação reivindicando a indenização pelos danos morais e materiais impostos às famílias dos trabalhadores mortos e feridos na explosão.

Nos autos daquele processo, uma decisão do Juiz Federal Dr. Pompeu de Sousa Brasil bem resume os motivos da dor a que estão submetidos os trabalhadores, ao dizer que, se o Exército não tivesse condições de fiscalizar a fabricação de fogos, “não deveria sequer ser permitida a implantação de tais negócios, periclitando escandalosamente a vida de inocentes que subestimam qualquer perigo ante a perspectiva de um emprego, de uma renda, por mínima e desproporcional ao risco que seja. Está-se a tratar de sertão nordestino e da situação de carência e abandono que envolve sua população”.

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[1] Advogado, diretor da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, Diretor do departamento de direitos humanos da Federação Nacional dos Advogados, Membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB/SP, Diretor do Sindicato dos Advogados de São Paulo e Diretor da Federação dos Advogados de São Paulo.

[2] Jornalista e diretora da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos.

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