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Relatórios


No final de 2001, 40 milhões de pessoas viviam com HIV/AIDS em todo o mundo. Desse total, 95% estavam em países em desenvolvimento e menos de 1 milhão estariam recebendo tratamento. Foram 3 milhões de mortes em 2001. O Brasil se tornou uma liderança ao garantir o acesso a medicamentos para pessoas com AIDS registradas nos serviços públicos de saúde. Em torno de 10% das pessoas que, globalmente, estão recebendo medicamentos são brasileiras. Tal política fez o Sistema Único de Saúde poupar mais de 1 bilhão de dólares e diminuiu em 54% a mortalidade em São Paulo e 73% no Rio de Janeiro

BRASIL E O ACESSO AOS MEDICAMENTOS PARA AIDS:
A SAÚDE PÚBLICA COMO UMA QUESTÃO DE DIREITOS HUMANOS

Jane Galvão[1]        

Introdução
A política brasileira de medicamentos para a AIDS fez com que o Brasil fosse reconhecido como um exemplo de controle da epidemia (Rosenberg, 2001)[2]. Mas o que fez com que o país, sempre lembrado pelas situações de desigualdade social, alcançasse tal reconhecimento? O que levou o Brasil a desafiar os tratados internacionais sobre propriedade intelectual, tendo, como justificativa, a distribuição de medicamentos para pessoas com AIDS? As respostas para estas questões não são simples e a limitação de espaço não permite explanações detalhadas, mas tentarei apresentar alguns dos fatores que fizeram com que o Brasil se tornasse uma liderança ao garantir o acesso a medicamentos para as pessoas com AIDS registradas nos serviços públicos de saúde, colocando tal política como uma questão de direitos humanos (MS, 2002a).

I. Breve Histórico da Epidemia de HIV/AIDS no Brasil

O Brasil foi pioneiro na criação de um programa governamental para AIDS, estabelecido em São Paulo em 1983 (Teixeira, 1997), sendo que um programa, em âmbito nacional, começou a ser implementado em 1985. O primeiro caso de AIDS no país é identificado como tendo ocorrido em 1980 e, desde esta data, até setembro de 2001, acumulou 222.356 casos, sendo 162.732 masculinos e 59.624 femininos; deste total, aproximadamente 50% já foram a óbito (MS, 2002b). As principais tendências da epidemia no país são: a pauperização; a interiorização, ou seja, o aumento de casos de AIDS fora dos centros urbanos; e a feminização (MS, 2002a).

Quanto à sociedade civil, o Brasil apresenta uma diversidade de iniciativas. A partir de 1983, sobretudo no Rio de Janeiro e em São Paulo, atividades de informação foram iniciadas tendo à frente grupos gays (Galvão, 2000; Teixeira, 1987). Não podemos esquecer que, no início dos anos 80, a AIDS era noticiada pela mídia como “praga gay” e “câncer gay”, dentre outros nomes (Galvão, 2000; Watney, 1989). O que pode ser observado é que a mídia foi fundamental para, mesmo de uma maneira que pode ser considerada preconceituosa, difundir informação sobre aquela nova doença e, pela forma como o fez, impulsionar que organizações da sociedade civil se mobilizassem.

Em 1985 é fundada em São Paulo a primeira organização não-governamental (ONG) dedicada especificamente à AIDS, o Grupo de Apoio à Prevenção à AIDS (GAPA). Grupos de pessoas com HIV/AIDS, gays, lésbicas, travestis, feministas, organizações religiosas e profissionais do sexo têm sido particularmente importantes em oferecer iniciativas (Galvão, 2000).

Mas três outros pontos devem ser destacados para caracterizar algumas das especificidades da resposta brasileira para a AIDS, sobretudo porque nos leva a pensar como a conexão com direitos humanos foi feita no país. O primeiro diz respeito ao momento em que os casos de AIDS foram identificados no Brasil, ou seja, início dos anos 80, quando o país está saindo de uma ditadura militar (Parker, 1994). O segundo é a politização do campo da saúde no Brasil na década de 80 com articulações importantes, como o Movimento da Reforma Sanitária — formado, dentre outros, por profissionais de saúde e organizações da sociedade civil —, que lutavam pela transformação do sistema de saúde pública (Teixeira, 1997). O terceiro seria a participação tanto de pessoas deste movimento quanto outras que haviam lutado contra o regime militar e ex-exilados políticos — como Herbert de Souza, conhecido como Betinho, e Herbert Eustáquio de Carvalho, conhecido como Herbert Daniel[3] — no enfrentamento da epidemia de HIV/AIDS. Algumas dessas pessoas estavam tanto em organizações da sociedade civil quanto no setor governamental.

Tais aspectos são relevantes para o entendimento dos desdobramentos do enfrentamento da epidemia no país, mas deve ser acrescentada a Lei 9.313, de 13 de novembro de 1996, que torna obrigatório o fornecimento, pelo sistema público de saúde, de medicamentos para AIDS (Brasil, 1996). A assinatura desta Lei refletiu a luta dos grupos comunitários que moviam processos contra estados e municípios para garantir tanto assistência quanto tratamento para as pessoas com AIDS. Também, dá seguimento à política brasileira de distribuição de medicamentos para AIDS, iniciada em 1988, com remédios para infecções oportunistas (Galvão, 2002, no prelo; MS, 2002c; Passarelli & Terto Jr., 2002). Foi a implementação desta Lei que fez o programa brasileiro de AIDS receber um apoio pouco comum dispensado a órgãos públicos de saúde, ao mesmo tempo que levou o país a uma batalha internacional para garantir a continuidade da produção de medicamentos para AIDS. Tal luta é entendida, tanto na perspectiva do programa nacional de AIDS quanto da sociedade civil, como uma questão de direitos humanos.

II. A Conexão Saúde Pública e Direitos Humanos: Uma das Lições da AIDS

Uma importante contribuição dos que advogam a relação entre AIDS e direitos humanos é a noção que a violação dos direitos humanos aumenta a disseminação do HIV (Gruskin, Hendriks & Tomasevski, 1996; Mann, 1998). No caso brasileiro, esta foi uma questão que se colocou desde o início. Fazia parte das palavras de ordem das organizações da sociedade civil e, na prática, possibilitou o surgimento de vários grupos que tinham nos serviços de assessoria jurídica uma das principais atividades. A violação dos direitos das pessoas com AIDS, das mais diferentes formas, fez com que Herbert Daniel cunhasse a expressão “morte civil”, que definia o grau de preconceito e discriminação que então cercava as pessoas com AIDS (Daniel, 1989). Não que tal situação, tanto no Brasil quanto globalmente, tenha sido superada. Muito pelo contrário, como pode ser vista na campanha para o Dia Mundial de Luta Contra a AIDS (1 de Dezembro), para 2002-2003, que aborda estigma e discriminação (UNAIDS, 2002a).

Mas a conexão direitos humanos e AIDS está se impondo como uma das principais bandeiras de luta, encompassando as mais diversas reivindicações, como, por exemplo, acesso a medicamentos (OHCHR & UNAIDS, 2002), que passou a ser visto como um imperativo moral, sobretudo quando da divulgação de algumas estatísticas. No final de 2001, 40 milhões de pessoas estavam vivendo com HIV/AIDS em todo o mundo — sendo que deste total, 95% estão nos países em desenvolvimento —, menos de 1 milhão estariam recebendo tratamento (sobretudo por conta dos preços dos medicamentos) e, em 2001, o total de mortes foi de 3 milhões (UNAIDS, 2002b).

Em 2001, alguns acontecimentos reforçaram a importância de trabalhar a AIDS na agenda dos direitos humanos: a Comissão de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas aprova, em abril, a Resolução intitulada “Acesso a Medicamentos no Contexto de Pandemias como o HIV/AIDS” (United Nations, 2001); a proposta foi encaminhada pela delegação brasileira[4]. Na “The Fourth World Trade Organization Ministerial Conference”, realizada em novembro, em Doha, Qatar, é aprovada uma declaração que destaca que, em situações de emergência nacional, em saúde pública seja aplicado o licenciamento compulsório (WTO, 2001)[5]; a proposta que levou à declaração foi encaminhada pelo Brasil.

III. A Experiência Brasileira em Acesso a Medicamentos para AIDS

Além da participação nos fóruns internacionais acima mencionados, a visibilidade e liderança do Brasil começaram a ser estabelecidas em 2001, sobretudo por dois fatores. Em fevereiro de 2001, a Organização Mundial do Comércio (OMC) aceitou o pedido de um painel contra o Brasil pelos Estados Unidos, onde era questionada a lei de patentes brasileira. Tal pedido tinha, como pano de fundo, a produção nacional de anti-retrovirais (ARVs)[6]. Também em fevereiro de 2001, por conta de preços considerados abusivos, o Ministério da Saúde ameaçou licenciar compulsoriamente a patente de dois ARVs[7]. Após negociações, um dos medicamentos teve o preço reduzido em 60% (Galvão, no prelo). Continuando o que era tido como a defesa do programa brasileiro de AIDS, o Ministério da Saúde, em uma atitude pouco usual, colocou anúncio em jornais norte-americanos, como o New York Times, nos quais dizia: “A produção local de muitas das drogas usadas no coquetel anti-AIDS permite que o Brasil continue a controlar a expansão da AIDS. A indústria de medicamentos vê nisto um ato de guerra. Nós vemos como um ato de vida”[8] (New York Times, 23 de junho de 2001: A14). Neste processo, o Brasil recebeu apoio de ONGs internacionais — como OXFAM e Médicos sem Fronteiras —, países, grupos comunitários, dentre outros. Em junho de 2001, os Estados Unidos retiram a queixa contra o Brasil. Mas é importante destacar que, até o momento, o Brasil não usou o licenciamento compulsório para a produção de nenhum medicamento para AIDS.

Dados de 2001 destacam que mais de 100 mil pessoas estão recebendo medicamentos para AIDS no Brasil, a um custo estimado de 232 milhões de dólares (MS, 2002c), o que significa que todas as pessoas com AIDS registradas no sistema público de saúde estão sendo beneficiadas. Tais números revelam — observando os dados divulgados pela UNAIDS e mais acima mencionados (UNAIDS, 2002b) — que em torno de 10% das pessoas que, globalmente, estão recebendo medicamentos são brasileiras. O fato do país demonstrar que, com tal política, fez o Sistema Único de Saúde (SUS) poupar, entre 1997-2001, mais de 1 bilhão de dólares e que a mortalidade teria caído, entre 1995-2000, 54%, em São Paulo, e 73%, no Rio de Janeiro (MS, 2002c), é tido como um fator que corrobora o compromisso nacional para a continuidade desta ação . Mas as desigualdades econômicas apontam para o cenário mais amplo onde tal política é implementada. Matéria publicada na Folha de S. Paulo comenta que no Estado de São Paulo mais da metade das 40 mil pessoas que em 2001 utilizavam ARVs estavam desempregadas (Biancarelli, 2001), ao mesmo tempo em que o aumento da infecção pelo HIV e crises econômicas trazem desafios para a continuidade do programa de distribuição dos medicamentos. Neste sentido, apesar do sucesso, a mobilização comunitária e o apoio de organizações internacionais ainda são elementos fundamentais para a manutenção da iniciativa brasileira. Ao mesmo tempo, um compromisso global é necessário para a expansão desta iniciativa para outros países, visando garantir o acesso ao tratamento para AIDS como uma forma de promover o respeito aos direitos humanos.

Jane Galvão é Doutora em Saúde Coletiva. Trabalhou em ONGs como o Instituto de Estudos da Religião (ISER) e a Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia) e na Coordenação Nacional de DST e Aids (CN DST e Aids), sendo atualmente consultora. No momento está como pesquisadora visitante na Universidade da California, Berkeley, Escola de Saúde Pública.

Referências

BIANCARELLI, Aureliano. 2001. Maioria dos que tomam coquetel está sem emprego. Folha de S. Paulo, São Paulo, 20 set.

BRASIL. 1996. Lei N° 9.313 de 13 de Novembro de 1996. Dispõe sobre a distribuição gratuita de medicamentos aos portadores do HIV e doentes de AIDS. Disponível online: http://www.aids.gov.br/assistencia/lei9313.htm (acessado 04 outubro 2002).

DANIEL, Herbert. 1989. Vida antes da morte/Life before death. Rio de Janeiro: Tipografia Jaboti.

GALVÃO, Jane. 2000. AIDS no Brasil: a agenda de construção de uma epidemia. Rio de Janeiro: ABIA; São Paulo: Editora 34.

GALVÃO, Jane. 2002. A política brasileira de distribuição e produção de anti-retrovirais: privilégio ou um direito? Cadernos de Saúde Pública, 18 (1): 213-219.

GALVÃO, Jane. No prelo. Access to antiretroviral drugs in Brazil. Lancet.


GRUSKIN, Sofia, HENDRIKS Aart & TOMASEVSKI Katarina. 1996. Human rights and responses to AIDS. In: MANN, J. & TARANTOLA, D. (Eds.). AIDS in the world II. New York: Oxford University Press, p. 326-340.

INPI (Instituto Nacional da Propriedade Industrial). 1996. Lei da Propriedade Industrial (Lei 9.279). Disponível online: http://www.inpi.gov.br/legislacao/conteudo/lei.htm (acessado 04 outubro 2002).

MANN, Jonathan. 1998. AIDS and Human Rights: where do we go from? Health and Human Rights, 3 (1):143-149.

MS (Ministério da Saúde). 2002a. A experiência do Programa Brasileiro de Aids. Brasília: Coordenação Nacional de DST e Aids, MS.

MS (Ministério da Saúde). 2002b. Boletim Epidemiológico AIDS, Ano XV, n° 1. Brasília: Coordenação Nacional de DST e Aids, MS.

MS (Ministério da Saúde). 2002c. National AIDS drug policy. Brasília: Coordenação Nacional de DST e Aids, MS.

OHCHR (Office of the High Commissioner for Human Rights)/UNAIDS (Joint United Nations Programme on HIV/AIDS). 2002. HIV/AIDS and Human Rights International Guidelines (Guideline 6). New York: OHCHR; Geneva: UNAIDS.

OXFAM (The Oxford Committee for Famine Relief). 2001. Companhias Farmacêuticas x Brasil: Uma Ameaça à Saúde Pública. Recife: OXFAM.

PARKER, Richard. 1994. A construção da solidariedade: AIDS, sexualidade e política no Brasil. Rio de Janeiro: ABIA: IMS/UERJ: Relume Dumará.

PASSARELLI, Carlos & TERTO JR., Veriano. 2002. Good medicine: Brazil's multifront war on AIDS. NACLA, 35(5).

ROSENBERG, Tina. 2001. Look at Brazil. New York Times, New York, jan. 28, The New York Times Magazine.

TEIXEIRA, Paulo R. 1997. Políticas públicas em AIDS. In: PARKER, R. (Org.). Políticas, instituições e AIDS: enfrentando a epidemia no Brasil. Rio de Janeiro: ABIA: Jorge Zahar, p. 43-68.

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UNAIDS (Joint United Nations Programme on HIV/AIDS). 2002b. Report on the global HIV/AIDS epidemic. Geneva: UNAIDS.

UNITED NATIONS. 2001. Access to medication in the context of pandemics such as HIV/AIDS. Commission on Human Rights, 57th Session, Resolution 2001/33. Disponível online:http://www.unhchr.ch/huridocda/huridoca.nsf/framepage/
docs+chr?opendocument (acessado 04 outubro 2002).

VIANA, José Marcos N. 2002. Intellectual property rights, the World Trade Organization and public health: the Brazilian perspective. Connecticut Journal of International Law, 17 (2).

WATNEY, Simon. 1989. Policing desire: pornography, AIDS and the media. Minneapolis: University of Minnesota Press.

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/mindecl_trips_e.htm
(acessado 04 outubro 2002).

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[1] Agradeço à Fogarty International AIDS Training Program, pelo apoio recebido durante minha temporada como pesquisadora visitante na Escola de Saúde Pública, Universidade da California, Berkeley (Grant Number 1-D43-TW00003), período no qual escrevi este artigo. Agradeço a Carlos Passarelli pela leitura e sugestões.

[2] A denominação do programa é Coordenação Nacional de Doenças Sexualmente Transmissíveis e AIDS (CN DST/AIDS), vinculado à Secretaria de Políticas de Saúde, Ministério da Saúde. Para informações ver: http://www.aids.gov.br.

[3] Em 1986, Betinho fundou, no Rio de Janeiro, a Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA) e, em 1989, também no Rio de Janeiro, Daniel criou o primeiro grupo Pela VIDDA (Valorização, Integração e Dignidade do Doente de AIDS). Por complicações relacionadas à infecção pelo HIV os dois já faleceram: Daniel, em março de 1992 e Betinho, em agosto de 1997. Para informações sobre a ABIA ver: http://www.abiaids.org.br. Para informações sobre o Pela VIDDA/RJ ver: http://www.pelavidda.org.br.

[4] A proposta teve 52 votos a favor e uma abstenção, os Estados Unidos (OXFAM, 2001).

[5] Alguns países possuem legislação específica para quando o licenciamento compulsório — assim chamado porque uma autorização pode ser emitada sem a permissão do detentor da patente — pode ser aplicado. Para o caso brasileiro ver: INPI, 1996; OXFAM, 2001; Viana, 2002.

[6] A política brasileira de distribuição de medicamentos está apoiada na compra em companhias farmacêuticas internacionais e na produção local. Por exemplo, em 2001, dos 15 ARVs distribuídos, sete estavam sendo fabricados no país, por laboratórios públicos e privados (MS, 2002c).

[7] O licenciamento compulsório, sobretudo em matérias jornalísticas, é chamado “quebra de patente”.

[8] Tradução da autora.

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