PÁGINA PRINCIPAL
Pagina Principal

Relatórios


Ao contrário do que proclamam os modernos de todo o tipo e estirpe, a intervenção do Estado nas relações de trabalho tem que ser aprofundada, ao invés de amenizada. Com todas as limitações de eficácia já por aqui descritas, o poder do Estado é que pode contrabalançar (ainda que precariamente) esta desproporção de forças. Nos últimos anos, o chamado poder normativo do fático, ou seja, a violência das forças econômicas em expansão, vem construindo amplas zonas de não-direito. São aqueles territórios de terceirização e precarização.

O teatro da Reforma Trabalhista

João José Sady*


No teatro do absurdo da política brasileira, um dos espetáculos mais sinistros foi o assalto ao Direito do Trabalho promovido nos estertores do reinado de FHC, através da tão falada Emenda Dornelles que propunha a chamada "prevalência do negociado sobre o legislado". Quando todos pensavam que já havia se consumado o último ato daquela tragicomédia, tudo recomeça, e a única diferença é que alguns autores mudaram de personagem. Retorna o enganoso discurso da reforma do Direito do Trabalho.

Enquanto os dinossauros afirmam que suprimir direitos trabalhistas não vai gerar empregos, outros insistem na cantilena do custo Brasil e reclamam a quebra da CLT que volta a ser tão mal falada como antes. Construíram-se paredes feitas de discursos, vaticínios e análises por detrás das quais, se pretende esconder qual é a verdadeira lei que está a regular as relações entre patrões e empregados. É espantoso que as pessoas não percebam que o grande problema é a assim chamada lei da oferta e da procura. Tal postulado, de validade por todos reconhecida, enuncia-se do modo mais singelo: quando a oferta é maior do que a procura, o lado da oferta está em péssima situação de barganha.
Estamos falando de um mercado de trabalho e neste tipo de balcão, a oferta de mão-de-obra não é passível de controle e despeja milhões de novos vendedores de força de trabalho no mercado a cada ano . Como é preciso comer todos os dias, não há como os vendedores esperarem para entrar no mercado. Do lado de cá, não há como se livrar do excedente de pessoas para manter o preço da mão-de-obra. Do lado de lá, novos métodos de trabalho e a intensa renovação tecnológica continuam a destruir postos de trabalho e diminuir a procura por pessoas.

A principal promessa com que se acena aos trabalhadores para que abram mão de seus direitos é a sedução do crescimento econômico. Apertemos os cintos e iremos crescer ! No entanto, no Capitalismo, o crescimento econômico é, apenas, o crescimento da acumulação capitalista. O país tem se desenvolvido intensamente mas o povo, na verdade, não sai do lugar. Em 1977, o Produto Interno Bruto brasileiro foi de US$ 187.646 milhões e o de 1998 totalizou US$ 777.501 milhões.

O país quadruplicou sua produção de riqueza neste período e, no entanto, a desigualdade manteve-se estável por todo este período.
Em 1977, os 20% mais pobres do país ficavam com 2,4% da renda nacional, enquanto que os 20% mais ricos abocanhavam 66,6% da mesma. No entanto, em 1998, o andar de baixo estava com a sua renda reduzida para 2,2% da renda do país, enquanto que no andar de cima a fatia era 64,2%. Em duas décadas, o PIB cresceu 400% e não houve nenhuma redistribuição de renda.

A explosão da produtividade do trabalho tem sido cantada em prosa e verso, como se vê em reportagem publicada recentemente numa revista semanal sobre a grande vitória econômica dos anos FHC: "medida pelo número de produtos que cada empregado fabrica por ano, a produtividade da mão-de-obra cresceu a uma taxa anual de 8%. O desempenho é cerca de vinte vezes superior ao da década de 80 (...) Por qualquer lado que se examine a questão, os números são impressionantes. Em 1992, um empregado do setor têxtil no Brasil produzia 3 toneladas de tecido por ano. Hoje, produz cinco vezes mais".

A situação dos trabalhadores já era absolutamente desvantajosa e na última década despencou ladeira abaixo em função destes enormes ganhos de produtividade. O Brasil não é um país pobre: é um país injusto. Relegar a questão para ser resolvida pelo mercado de trabalho foi a opção que condenou tantos brasileiros à desgraça, já que em tal território a única lei realmente eficaz é aquela da relação entre a oferta e a demanda.

Os sindicatos não têm capacidade de resistência ante à destruição de empregos em razão da introdução de novas tecnologias. Anote-se que "as garantias aos trabalhadores, no caso de adoção de inovações tecnológicas e/ou organizacionais, são quase inexistentes nos acordos". O Direito do Trabalho, ao impor limitações ao poder dos patrões, exerce alguma influência restritiva ao agravamento deste quadro devastador. No entanto, não passa de um esgarçado ordenamento em farrapos, que foi e continua a ser impotente para conter os efeitos do enxugamento da demanda e da explosão da oferta de força de trabalho. A celeuma em torno da reforma exprime a ânsia do capital em derrubar a última (e tão combalida) barreira remanescente, recrutando ingênuos aliados naqueles sindicalistas que vislumbram no apaziguamento e na razoabilidade possibilidades de sofrear o ímpeto da outra parte.

A reforma do direito do trabalho será uma ponte partindo do nada e postada em direção a lugar nenhum. Desmontar os direitos trabalhistas não contribui para o crescimento econômico porque o mercado tem mecanismos muito mais poderosos para obter a redução do custo. A reativação da economia é um objetivo importante, mas, se ficar somente por conta do mercado, não irá retirar o povo deste pântano de desigualdade. A verdade é que "o maior desafio brasileiro é o de aliar o crescimento econômico à geração de empregos, à distribuição de renda e à redução das desigualdades sociais, regionais e de todo".

Como obter resultados no enfrentamento a este desafio é uma questão de difícil resposta. Com certeza, todavia, este não será o resultado que se possa obter utilizando a reforma do Direito do Trabalho como instrumento para remover obstáculos ao crescimento. Aliás, nem a mudança das normas legais e nem o mero crescimento econômico apresentam qualquer serventia para resolver estes grandes problemas de desigualdade. Este debate não passa de uma farsa produzida pelo conluio entre os atores (inclusive dentro do sindicalismo) a serviço das classes dominantes.

Ao contrário do que proclamam os modernos de todo o tipo e estirpe, a intervenção do Estado nas relações de trabalho tem que ser aprofundada, ao invés de amenizada. Com todas as limitações de eficácia já por aqui descritas, o poder do Estado é que pode contrabalançar (ainda que precariamente) esta desproporção de forças. Nos últimos anos, o chamado poder normativo do fático, ou seja, a violência das forças econômicas em expansão, vem construindo amplas zonas de não-direito. São aqueles territórios de terceirização e precarização. É preciso organizar o Direito para resistir contra os núcleos de força deste novo Direito do Capital. A situação exige, sim, a Reforma do Direito do Trabalho, mas, criando suportes mediante os quais, os trabalhadores possam enfrentar o vendaval da Terceira Revolução Industrial, instituindo compensações jurídicas para a desigualdade de forças concretamente produzida.

A CLT deve permanecer intocada em seus pontos essenciais e funcionar como legislação de sustento, garantindo um mínimo de proteção e uma barreira de resistência contra a precarização dos contratos, obstando a terceirização desenfreada, o tráfico de mão-de-obra, a "coooperfraudização" do trabalho. A sua eficácia nesta direção, todavia, tem de ser maximizada através da cristalização do direito à tribunalização da defesa dos direitos metaindividuais homogêneos, efetivando-se plenamente o direito à substituição processual.

É preciso instituir uma lei das demissões coletivas, legislação que regule a demissão em massa, impondo ao capital a obrigação de negociar na implantação do desassalariamento. Precisamos de uma lei de proteção contra a automação abusiva, estabelecendo regras que regulamentem a introdução da robotização de modo a fazer cessar seus efeitos devastadores, obrigando à negociação quanto a eliminação de postos de trabalho dela resultante. A negociação coletiva precisa de uma legislação de fomento que induza à negociação, principalmente, pela garantia da incorporação das cláusulas normativas aos contratos individuais ou a mera renovação das mesmas, no caso de que o capital não se disponha a negociar.

Necessitamos de lei de proteção contra práticas anti-sindicais para evitar que se utilize a quebra dos sindicatos como forma de impor a vontade patronal na negociação. Urge, também, a lei de proteção contra práticas desleais de negociação tão utilizadas pela classe patronal, como a contratação de substitutos para os grevistas, as ameaças e as demissões por retaliação. Necessária, também, a legislação de direito à informação sobre as reais condições das empresa, para que se possa discutir com franqueza e lealdade a real capacidade do empregador em acolher as reivindicações. A estrutura sindical que irá negociar neste novo terreno da contratação coletiva não terá capacidade de conflito suficiente se não for dotada de novos instrumentos como a representação sindical por empresa; o reconhecimento do direito à representação, negociação e à contratação, através da legalização das centrais sindicais; a estrutura sindical tem de ser saneada mediante a extinção da contribuição sindical e a instituição de cotas de solidariedade universalizadas a partir de seu caráter negocial, como contribuição obrigatória para todos os beneficiários da contratação coletiva.

Em resumo, a questão é bem mais complexa do que pensam alguns que imaginam que o Estado possa retirar-se da arena do conflito entre capital e trabalho justamente no momento em que ocorre a exacerbação dos poderes do Capital.


*João José Sady é Advogado, Mestre e Doutor em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP e professor no curso de Direito da Universidade de São Francisco, em São Paulo.