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Relatórios


O processo de militarização no continente tem gerado o aumento das violações de direitos humanos e da repressão a movimentos sociais, o deslocamento e a migração forçada de milhões de pessoas, a destruição do meio-ambiente, a perda da soberania e da autodeterminação dos povos. Na América Latina, os EUA intensificam a instalação de bases militares como no caso de Manta (Equador), Três Esquinas e Letícia (Colômbia), Iquitos (Peru), Rainha Beatrix (Aruba), Hato (Curaçao) e Comalapa (El Salvador). Essas bases complementam o cerco dos EUA no Continente, que também possui bases militares em Porto Rico (Vieques), Cuba (Guantánamo) e Honduras (Soto de Cano). Os EUA pretendem ainda construir bases militares na Argentina (Terra do Fogo), assim como controlar a base de Alcântara, no Brasil.

A presença militar dos Estados Unidos na
América Latina

Maria Luisa Mendonça*


A consolidação do domínio econômico e militar da América Latina tem sido uma das prioridades do governo dos Estados Unidos. O crescente processo de militarização no Continente tem como objetivo assegurar o controle de recursos naturais e manter a dependência econômica dos países latino-americanos.

Após os atentados em Nova York e Washington, em 11 de setembro de 2001, o governo de George W. Bush acelerou sua escalada militar em todo o mundo. Na América Latina, a estratégia dos Estados Unidos inclui a instalação de novas bases militares e o reforço de bases já existentes, o treinamento de militares latino-americanos, a venda de armas, a instalação de sistemas de vigilância e espionagem, além da influência sobre o poder judiciário em países latino-americanos. Essa política visa defender os interesses de grandes empresas e garantir o controle de recursos naturais, principalmente petróleo, água e biodiversidade.

O processo de militarização no continente tem gerado o aumento das violações de direitos humanos e da repressão a movimentos sociais, o deslocamento e a migração forçada de milhões de pessoas, a destruição do meio-ambiente, a perda da soberania e da autodeterminação dos povos.

Além do grande aumento do orçamento do Pentágono, que chega a 400 bilhões de dólares, o governo de Bush tem dado sinais claros de seu unilateralismo. Por exemplo, a administração de Bush rechaçou a Convenção de Armas Biológicas e, ao mesmo tempo, realiza testes ilegais com essas armas, além de recusar o acesso de inspetores em seus laboratórios. Os Estados Unidos rechaçaram também o Tratado sobre Mísseis Antibalísticos, a Convenção da ONU sobre Tortura (para evitar a investigação de tortura contra prisioneiros na Base de Guantánamo), e pretende violar o Tratado Contra Testes Nucleares.

Na América Latina, os EUA intensificam a instalação de bases militares como no caso de Manta (Equador), Três Esquinas e Letícia (Colômbia), Iquitos (Peru), Rainha Beatrix (Aruba), Hato (Curaçao) e Comalapa (El Salvador). Essas bases complementam o cerco dos EUA no Continente, que também possui bases militares em Porto Rico (Vieques), Cuba (Guantánamo) e Honduras (Soto de Cano). Os EUA pretendem ainda construir bases militares na Argentina (Terra do Fogo), assim como controlar a base de Alcântara, no Brasil.

A Base de Alcântara

O governo brasileiro decidiu suspender a votação na Câmara dos Deputados sobre o acordo que permitiria o uso da Base de Alcântara pelos Estados Unidos. Durante a administração de Fernando Henrique Cardoso, o projeto havia sido aprovado na Comissão de Ciências e Tecnologia e rejeitado na Comissão de Relações Exteriores. Após a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva, o projeto ficou paralisado da Comissão de Constituição e Justiça, o que significa a suspensão de sua tramitação no Congresso Nacional.

Essa decisão foi resultado de uma grande mobilização em nível nacional e continental, através da Campanha contra a ALCA, e da resistência das comunidades remanescentes de quilombos em Alcântara. No ano passado, o plebiscito popular sobre a ALCA incluiu uma pergunta sobre o controle da Base de Alcântara pelos Estados Unidos, que obteve a rejeição de mais de 10 milhões de eleitores.

O acordo sobre a Base de Alcântara estabelecia diversas obrigações para o Brasil e nenhuma para os Estados Unidos, além de ferir a soberania nacional em diversos aspectos. Por exemplo, Os EUA poderiam delimitar áreas restritas, onde só haveria acesso livre para oficiais norte-americanos; o governo brasileiro seria proibido de verificar o conteúdo dos materiais recebidos ou enviados pelos EUA e, em caso de acidente, o governo brasileiro não poderia inspecionar o material recolhido.

O acordo permitiria o uso comercial das instalações do Centro de Lançamento de Alcântara, a ser explorado prioritariamente pelo setor privado, o que contradiz o argumento utilizado originalmente para a desapropriação da área-e o deslocamento de dezenas de comunidades remanescentes de quilombos-que alegava o desenvolvimento da tecnologia espacial brasileira, ou seja, seria de interesse público.

A região de Alcântara é considerada uma das "portas de entrada" para a Amazônia brasileira, habitada por quilombos-comunidades negras tradicionais, com culturas, formas de produção e regras internas próprias. A importância histórica dessas comunidades fez com que a Constituição brasileira reconhecesse o direito aos seus territórios. Porém, a instalação do Centro de Lançamento de Alcântara nos anos 70, pelo regime militar, causou a expulsão de dezenas de quilombolas de suas terras. Caso a base de Alcântara volte a ser utilizada, está previsto o deslocamento da maioria dessas comunidades.

O Acordo com a Ucrânia

Atualmente, o Congresso Nacional analisa um acordo entre Brasil e Ucrânia para a utilização da base. O documento foi aprovado na Câmara dos Deputados, com parecer favorável de seu relator, o deputado Jorge Bittar (PT-RJ). O próximo passo é a votação no Senado, onde a relatora do projeto é a senadora Roseana Sarney (PFL-MA).

Esse acordo representa um novo perigo para as comunidades quilombolas, além de conter as mesmas restrições que os Estados Unidos procuravam impor. Na atual proposta, não existe nenhum mecanismo para garantir que o governo brasileiro tenha acesso à tecnologia, à áreas restritas e à inspeção de materiais na base (ver texto abaixo). Portanto, se o governo aceitar as condições da Ucrânia, não terá argumentos para recusar uma proposta semelhante dos Estados Unidos.

O compromisso da Campanha Contra a ALCA é continuar com o acompanhamento das negociações sobre o uso da base de Alcântara, no sentido de garantir a soberania nacional e os direitos das comunidades quilombolas. A proposta do deputado Jorge Bittar (PT-RJ) não contém nenhuma garantia que preserve o controle do governo brasileiro. As cláusulas abaixo estabelecem apenas que Brasil e Ucrânia "envidarão seus melhores esforços" , na garantia desses direitos. A proposta prevê:

I- em relação ao disposto no artigo IV, parágrafo 3, o Governo da República Federativa do Brasil e o Governo da Ucrânia envidarão seus melhores esforços para assegurar que autoridades brasileiras participem também do controle das áreas restritas, respeitada a proteção da tecnologia de origem ucraniana;

II- no que tange ao estabelecido no artigo V, o Governo da República da Ucrânia envidará seus melhores esforços para autorizar os seus Licenciados a divulgar informações referentes à presença, nas Cargas Úteis ou nos Veículos Lançadores e Espaçonaves, de material radioativo ou de quaisquer substâncias que possam ser danosas ao meio ambiente ou à saúde humana, bem como dados relativos ao objetivo do lançamento e ao tipo e às órbitas dos satélites lançados, respeitada a proteção da tecnologia de origem ucraniana;

III- em referência ao estipulado no artigo VI, parágrafo 2, as Partes envidarão seus melhores esforços para assegurar que pessoas autorizadas pelo Governo da República Federativa do Brasil participem também, no que couber, do controle do acesso a Veículos de Lançamento, Espaçonaves e Equipamentos Afins, respeitada a proteção da tecnologia de origem ucraniana;

IV- em relação ao disposto no artigo VI, parágrafo 5, as Partes envidarão seus melhores esforços para assegurar que os crachás de identificação a serem utilizados pelos indivíduos que controlarão as áreas restritas serão emitidos pelo Governo da Ucrânia ou pelo Licenciado Ucraniano, para o pessoal ucraniano, e pelo Governo da República Federativa do Brasil, para o pessoal brasileiro, respeitada a proteção da tecnologia de origem ucraniana;

V- em referência ao determinado no artigo VII, parágrafo 1.B, as Partes envidarão seus melhores esforços para assegurar que os "containers" lacrados poderão ser abertos para inspeção por autoridades brasileiras devidamente autorizadas para tal pelo Governo da República Federativa do Brasil, na presença de autoridades ucranianas e em áreas apropriadas, sem que isto implique estudo técnico indevido do material ali contido e preservada inteiramente a proteção da tecnologia de origem ucraniana.

VI- no que tange ao estipulado no artigo VIII, parágrafo 3, alínea "a", o Governo da República Federativa do Brasil assegurará, em prazo condizente com o Acordo sobre o Salvamento de Astronautas e Restituição de Astronautas e de Objetos Lançados ao Espaço Cósmico, de 22 de abril de 1968, a restituição aos Participantes Ucranianos de todos os itens associados ao Veículo de Lançamento ou Espaçonaves recuperados pelos Representantes Brasileiros, sem examiná-los ou fotografá-los de nenhuma maneira, excetuados os casos em que as autoridades brasileiras julguem por bem assim proceder no interesse da saúde e segurança públicas e da preservação do meio ambiente, respeitada a proteção da tecnologia de origem ucraniana.

Art. 4º Este decreto legislativo entra em vigor na data de sua publicação.


Treinamento Militar

A estratégia do governo estadunidense inclui o treinamento de militares latino-americanos, como no caso da Operação Cabañas, realizada na Argentina com a participação de 1.500 oficiais dos EUA, Chile, Brasil, Bolívia, Equador, Paraguai, Peru e Uruguai.

Segundo documentos do governo argentino, o objetivo desse treinamento seria criar um "comando militar unificado" para combater o "terrorismo na Colômbia, além de um campo de batalha composto por civis, organizações não-governamentais e agressores potenciais". A mídia estadunidense colabora com esse processo. Por exemplo, um artigo de 23 de outubro de 2002, publicado no jornal Miami Herald, defende a necessidade da criação de uma Força Militar Sul-Americana para lutar contra a guerrilha na Colômbia e para "lidar com ameaças internas semelhantes no futuro".

Esse comando atuaria ainda na região da Tríplice Fronteira entre Brasil, Paraguai e Argentina. A autorização para a entrada de tropas estadunidenses na América Latina inclui garantias de imunidade diplomática, o que significa que soldados norte-americanos suspeitos de crimes ou violações de direitos humanos não poderiam ser julgados em países latino-americanos.

Além disso, os EUA continuam treinando militares latino-americanos na Escola das Américas e pretendem criar a Academia Internacional para o Cumprimento da Lei, na Costa Rica, com o objetivo de influenciar a legislação e as forças policiais dos países da região.

Outra forma de controle por parte dos Estados Unidos é a instalação de mecanismos como o SIVAN (Sistema de Vigilância da Amazônia), um projeto de 1.4 bilhões de dólares, realizado pela empresa norte-americana Raytheon, com capacidade de monitorar 5,5 milhões de Km. O SIVAN prevê ainda a compra de aviões de guerra, como o Tucano A-29. Na Argentina, o Pentágono também planeja criar o Plano Nacional de Radarização, como parte de um Sistema Internacional de Vigilância.

Essa escalada militar fortalece a indústria bélica norte-americana. Por exemplo, a estrutura da Base de Manta, com capacidade de controlar o espaço aéreo em um raio de 400 Km, está sob a responsabilidade da empresa DynCorp, acusada de envolvimento com a CIA. A Base de Manta será equipada com grandes jatos E-3 Awacs, com caças F-16 e F-15 Eagle, para controle da região Amazônica, do Canal do Panamá e da América Central. Outras empresas bélicas e de tecnologia militar, como a Raytheon e a Northop, estimam um aumento de 50% em seu lucro esse ano.

Plano Colômbia e Plano Puebla-Panamá

Os Estados Unidos aceleram também o Plano Colômbia, que inclui um aparato de 1.3 bilhões de dólares, sendo que o Secretário de Estado dos EUA, Colin Powell, garantiu mais US$731 milhões para financiar a participação do Equador, Bolívia e Peru nas operações militares. Os principais focos de violência na Colômbia, que causam a expulsão da população indígena e camponesa de suas terras, coincidem com as regiões mais ricas em biodiversidade.

O Plano Colômbia facilita a implementação de mega-projetos hidroelétricos, petrolíferos e de mineração, patrocinados pelo Banco Mundial e por empresas multinacionais. Mais de um milhão de hectares da floresta colombiana já foram contaminados pelas fulmigações de agentes químicos, e o número de refugiados internos chega a três milhões de pessoas (400.000 somente no ano passado), sendo 75% mulheres e crianças. Nos últimos 20 anos, o número de mortos chega a 200.000-sendo 5.000 líderes de sindicatos e movimentos sociais.

A estratégia estadunidense na América Latina inclui acordos comerciais regionais, como o Plano Puebla-Panamá-um projeto transnacional de construção de um canal terrestre ligando o sul do México até a América Central, passando pela Guatemala, Belize, El Salvador, Honduras, Nicarágua, Costa Rica e Panamá. Essa região é rica em biodiversidade e recursos naturais, além do projeto possibilitar a utilização de mão-de-obra barata e não sindicalizada.

O Plano Puebla-Panamá prevê a construção de um complexo de maquiladoras, ou linhas de montagem, controlado por empresas multinacionais. As maquiladoras também são conhecidas como "processadoras para exportação", localizadas nas chamadas "áreas de livre comércio". Esse tipo de empresa começou a ser implantado no norte do México em 1965, através de um programa de industrialização na fronteira com os Estados Unidos. Essas empresas se multiplicaram a partir de 1994, com o início do NAFTA (Acordo de Livre Comércio entre o México, os Estados unidos e o Canadá). Existem hoje cerca de quatro mil maquiladoras no México, produzindo principalmente acessórios eletrônicos, equipamentos mecânicos, produtos têxteis, sapatos, brinquedos, comida enlatada e produtos químicos. A maior parte do capital, da matéria prima e do gerenciamento dessas empresas é estrangeira, e quase toda a produção é exportada, sem tributação.

Diversas organizações têm denunciado violações de direitos trabalhistas nas maquiladoras, como a repressão à organização de sindicatos, horas extras forçadas e maus-tratos. Como 60% da mão-de-obra é formada por mulheres, freqüentemente se registram casos de abuso sexual. Além disso, as mulheres são obrigadas a apresentar testes de gravidez como condição de contratação. Aquelas que engravidam e continuam trabalhando correm o risco de gerar crianças com deficiências físicas, causadas por sua exposição a agentes químicos. Segundo uma pesquisa do Comite de Apoyo Fronteirizo Obrero Regional (CAFOR), 76% das trabalhadoras apresentam dores pulmonares e 62% desenvolvem alergias e doenças de pele, em conseqüência do constante contato com produtos químicos.

Além das precárias condições de trabalho, a média salarial nas maquiladoras é de somente três dólares por dia. Normalmente os trabalhadores vivem nas chamadas "colônias" ou em favelas, sem saneamento básico, eletricidade ou água encanada. A destruição ambiental é comum nessas áreas, como no caso da cidade de Matamoros, na fronteira com o Texas, onde se encontram empresas como a General Motors e AT&T. Após a chegada das maquiladoras nessa região, verificou-se que o nível de agentes químicos nas fontes de água potável estava 50.000 vezes maior. De acordo com a organização Texas Center for Policy Studies, as maquiladoras foram responsáveis pelo depósito de aproximadamente 8.000 toneladas de agentes poluentes na fronteira do México com os Estados Unidos, somente em 1996.

A instabilidade dos empregos nas maquiladoras-somada as políticas de privatização de empresas estatais e a falta de apoio aos pequenos agricultores-continua gerando a migração maciça de trabalhadores mexicanos para os Estados Unidos. Ao mesmo tempo, o aumento da repressão na fronteira, iniciado em 1994 com a criação da operação Gatekeeper (que coincidiu com a implementação do NAFTA), tem gerado cada vez mais violações de direitos humanos. Todos os anos, são registradas centenas de mortes nas tentativas de cruzar a fronteira.

A intenção de ampliar o número de maquiladoras no México e na América Central, através do Plano Puebla-Panamá, é parte de uma estratégia econômica neoliberal, que visa desmantelar os setores públicos e a pequena agricultura. Além da exploração de mão-de-obra barata nas maquiladoras, o Plano Puebla-Panamá prevê a implementação de grandes latifúndios agrícolas para a produção de alimentos transgênicos. Outro objetivo do Plano Puebla-Panamá é o controle de recursos hídricos e biológicos. Somente em Chiapas, as hidroelétricas produzem 55% da energia do país. A região também conta com importantes reservas de gás natural, petróleo, urânio, alumínio e cobre.

Propostas da Campanha pela Desmilitarização das Américas (CADA)

Em oposição ao processo de militarização no Continente, dezenas de organizações sociais criaram a Campanha pela Desmilitarização das Américas (CADA). As diversas mobilizações da sociedade fizeram com que os Estados Unidos interrompessem suas operações em Vieques, além de impedir o controle da base de Alcântara e a construção de uma nova instalação militar no Equador. Essas vitórias se somam à oposição da sociedade argentina, impedindo a realização da operação Águillas III em seu território, que previa o treinamento de militares latinoamericanos pelos Estados Unidos, de 27 de outubro a 7 de novembro de 2003. Esses treinamentos tinham o objetivo de envolver países latinoamericanos no Plano Colômbia e aumentar a repressão contra movimentos sociais.

As principais recomendações e propostas da CADA são:

- Denunciar a dominação militar dos EUA na América Latina e suas conseqüências, como as violações de direitos humanos, a destruição ambiental e a perda da soberania e da auto-determinação dos povos.
- Coordenar ações solidárias e simultâneas, realizar mobilizações, investigações e ações jurídicas contra o aparato militar dos EUA e em defesa dos direitos humanos.
- Apoiar os movimentos sociais em cada país, que lutam por sua terra, sua cultura, seu trabalho e sua dignidade.
- A construção de um modelo econômico baseado na justiça social e na solidariedade entre os povos.
- A construção de uma alternativa igualitária e sustentável para a integração latino-americana.


* Maria Luisa Mendonça é jornalista, diretora da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos e membro da coordenação do Grito dos Excluídos Continental.