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Relatórios


A Comissão Mundial de Barragens (World Commission On Dams- WCD/2000) estimou que 1 milhão de pessoas foram expulsas de suas terras devido ‘a construção de barragens no Brasil. Isto corresponde a 300 mil famílias. Oitenta milhões de pessoas  já foram atingidas no mundo. Dados do MAB mostram que a cada 100 famílias deslocadas, 70 não receberam nenhum tipo de indenização.


ENERGIA A SERVIÇO DA EXPLORAÇÃO CAPITALISTA

*Marco Antonio Trierveiler

Gilberto Cervinski

Luiz Dalla Costa

Eduardo Zem


1.Sociedade de  consumo

 Não são poucos os autores, técnicos, ou não, do setor elétrico que separaram o debate da matriz energética do debate de modelo de sociedade que queremos ter e construir.  O Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) entende que fazer este debate somente na visão economicista e/ou tecnicista é limitá-lo. Esta forma interessa somente aos grandes grupos econômicos, produtores e consumidores de energia.  “A energia é um fator estruturante da sociedade, pois define e influencia os aspectos econômicos, financeiros, sociais, ambientais, culturais e políticos. (MORET,2004). A energia é estratégica para todos os tipos de sociedades, sejam elas capitalistas ou socialistas.

 O capitalismo tem gerado grande concentração da riqueza. Um pequeno número de grandes grupos econômicos controla o mercado mundial de energia. A maioria destas corporações tem como maiores acionistas os grandes bancos.

 Aproximadamente 75% de toda energia do mundo é consumida pelos Estados Unidos e Europa. Portanto, esses países buscam apoderar-se das fontes de energia ainda existente, através do controle territorial, bélico, econômico e de infra-estruturas energéticas.

 Na América do Sul, o projeto IIRSA do Banco Interamericano de Desenvolvimento-BID e da Corporação Andina de Fomento-CAF, prevê a construção de várias hidroelétricas, estradas, hidrovias, aeroportos, estradas de ferro, etc. Somente na Amazônia, este projeto previa inicialmente a construção de 10 hidrelétricas, 14 portos, 8 mil Km de estradas, 2 mil Km de ferrovias, 3 hidrovias, 4 aeroportos e 2 gasodutos.  Na grande maioria dos países, os governantes locais acabam apoiando esta estratégia, inclusive com suporte técnico e financeiro. No Brasil, o BNDES é um dos maiores responsáveis pelo financiamento das empresas do setor elétrico—363 obras são financiadas com recursos do Banco.

2. A Indústria das Barragens

 A eletricidade assume cada vez maior participação  e importância como fonte energética. 

 O crescimento da utilização da eletricidade  faz com que a indústria das barragens (tecnologia, turbinas, equipamentos de distribuição, empreiteiras, materiais de construção...) esteja entre as mais importantes do mundo, junto com a indústria do petróleo, automobilística e bélica.

 Dados da Comissão Mundial de Barragens (World Commission On Dams-2000) apontam a construção de 45.000 grandes barragens no mundo, sendo dois-terços  (2/3) construídas em países em desenvolvimento.

3. As barragens no Brasil

 No Brasil, a produção de energia através da hidroeletricidade  (barragens) representa mais de 79%.  Existem no Brasil aproximadamente 2.000 barragens.

 O Plano 2015 da ELETROBRÁS, prevê a construção de mais 494 grandes barragens. Segundo a Eletrobrás, também existe um potencial que poderá vir a ser explorado em PCHs (Pequenas Centrais Hidrelétricas), em torno de 942 novas barragens. Atualmente, segundo informações do Ministério do Meio Ambiente (MME), 50 grandes barragens se encontram em construção e, nos próximos três anos de governo Lula, estão sendo projetadas mais 70 grandes barragens.

 No levantamento (Inventário) feito pela ELETROBRÁS, do potencial hidroelétrico brasileiro, 64% encontra-se  na Região Amazônica, principalmente nos rios Tocantins, Araguaia, Xingu e Tapajós.  Atualmente há vários projetos nesta região, sendo os maiores a barragem de Belo Monte no rio Xingu-PA, e as barragens de Santo Antonio e Jirau no rio Madeira-RO.

 Para termos uma dimensão da indústria das barragens no Brasil, o faturamento dessas empresas na geração de energia em 2003 foi em torno de R$ 18 bilhões e na distribuição foi de R$ 30 bilhões. A maior parte destes recursos foi enviada ao exterior na forma de remessa de lucro.

4. Privatização da água e da energia

 Há duas concepções sobre energia. Uma delas entende a energia como um serviço essencial e, portanto, necessário para toda a população. A outra vê energia como uma mercadoria para fins de obtenção de lucro. Esta é a concepção que vem sendo aplicada no Brasil. Mais de 70% do mercado de distribuição de energia já foi privatizado, basicamente com dinheiro público (do BNDES e de Fundos de Pensão).    No setor de produção, a proposta do governo Lula para as “Parcerias Público Privadas- PPP” mantém o modelo de privatização. Junto com a energia está sendo privatizada a água. Após o lago da barragem ser formado, a empresa proprietária da barragem passa a definir o que pode ser feito com a água do lago. Em muitos casos, o lago é cercado e a população é impedida de usar a água.

5. Interesse Público x Interesse privado

 A construção de barragens é justificada como sendo de interesse público ou para gerar “desenvolvimento”. Na maioria dos casos, o Presidente da República emite a “desapropriação por utilidade pública”, que obriga a retirada da população de suas terras. Porém, a energia é tratada como MERCADORIA, para beneficiar grandes grupos econômicos.

 A Comissão Mundial de Barragens (World Commission On Dams- WCD/2000) estimou que 1 milhão de pessoas foram expulsas de suas terras devido ‘a construção de barragens no Brasil. Isto corresponde a 300 mil famílias. Oitenta milhões de pessoas já foram atingidas no mundo.  Dados do MAB apontam que a cada 100 famílias deslocadas, 70 não receberam nenhum tipo de indenização.

 As famílias que permanecem a beira do lago da barragem convivem com a desestruturação produtiva, econômica, social e cultura, além do aumento das doenças de natureza endêmica e do comprometimento da qualidade da água que afeta as atividades da pesca e agricultura.

 Crescem também a violência, a prostituição e a disputa por trabalho, pois muitos dos trabalhadores vindos de “fora” para construir a barragem acabam ficando na região.

 Estudos recentes estimam que nos próximos três anos a construção de barragens desalojará 100 mil famílias—número maior do que o previsto para serem reassentadas pelo programa de reforma agrária neste período. 

6. Barragens e meio ambiente

 Não existe energia limpa. Em maior ou menor grau, todas as fontes de energia provocam danos ao meio ambiente (Bermann).

 Alguns autores tem apresentado a energia hidroelétrica  como uma fonte energética “limpa, renovável e barata”. Não é verdade.

 O principal gás causador do efeito estufa é o gás carbônico.  Dados de 1999 apontam que no Brasil a emissão de gás carbônico pelas fontes energéticas foi de 315 milhões de toneladas. Nas barragens isto ocorre pela decomposição  do material orgânico, emitindo gás carbônico e gás metano.

 A prática de deixar madeira sem cortar, durante e depois do enchimento do lago, é comum na construção das barragens. Dados da Comissão Mundial de Barragens (World Commission On Dams-2000) apontam que 60% dos cursos dágua foram degradas ou fragmentados pela construção de barragens. Nos 34 mil Km² de terra fértil que foram inundados pelos reservatórios das barragens construídas, o que corresponde a 3,4 milhões de hectares, muita floresta, biodiversidade, e fauna foram destruídas.

A FRAUDE AMBIENTAL DA BARRAGEM DE BARRA GRANDE

 Veja um exemplo concreto de como é tratada a questão social no processo de construção de uma barragem. A   empresa de consultoria ENGEVIX, elaborou o Estudo de Impacto Ambiental-EIA da Barragem de Barra Grande, no Rio Pelotas, divisa dos Estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina. No Estudo a mata a ser alagada pelo futuro lago, foi descrita basicamente como capoeira. De posse deste EIA, foi solicitado  a Licença de Instalação ao IBAMA . Isto antes da Licitação, fato não muito comum na época.  O IBAMA, diz que de posse deste pedido o procedimento é verificar a campo os dados constantes no EIA.  Os relatórios técnicos  relatam, que no dia de sobrevoar a área, o avião “caiu” ainda na pista, e não foi feita a fiscalização. Mesmo que a vistoria não tenha sido feita, a licença foi emitida em 1998. A obra foi licitada já com a licença, e o Consórcio BAESA, formado pelas empresas ALCOA ALUMINIO SA, CAMARGO CORREA, COMPANHIA BRASILEIRA DE ALUMINIO-CBA E DME,  foi vencedor. Após 80% da obra construída, a empresa solicitou a licença para desmatamento, o que desmascarou a realidade: aproximadamente 52 % da área a ser alagada é formada de mata primaria e de mata em estado avançado de  regeneração.  Uma das principais reservas de Araucária do Brasil está ali localizada. Muitas delas serão cortadas, ou ficarão debaixo do lago.  Aplicando a política do fato consumado (80% da obra construída) o  MME, a BAESA e Ministério Público Federal fizeram acordo para a empresa poder desmatar a área, em troca da compra de outra área.  Mais uma vez o meio ambiente perdeu para o poder econômico. Os autores do EIA, a BAESA e os funcionários do IBAMA envolvidos na fraude continuam impunes.

7. Barragem e preço de energia

 Um recente estudo feito pelo Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Elétrico (ILUMINA), que  levantou o preço de energia  elétrica em 31 países, comprovou que o Brasil tem a 5ª tarifa mais cara de energia. O  peso da tarifa na renda do trabalhador brasileiro é bem maior que em outros países. Outros países como Canadá e Noruega, que também produzem energia elétrica através da hidroeletricidade, ocupam o 29º e 30º lugar respectivamente.

 Novamente fica comprovado: este modelo é concentrador de riqueza, pois a energia sai das barragens a um preço médio de R$100,00 e chega a casa do povo a um preço  maior do que R$ 400,00. Os mais prejudicados são os consumidores residenciais, que pagam tarifas mais caras, comparadas com a indústria e o comércio. De 1995 a 2004 a tarifa residencial teve um aumento real (descontada a inflação- INPC) de cerca de 50%, enquanto para  a indústria o aumento foi de  23%.

 Mas, não são todos que pagam energia tão cara. As grandes empresas têm subsídios (desconto) nas tarifas.  Veja o exemplo: A Barragem de Tucuruí-PA, construída com dinheiro público, abastece de energia as indústrias de alumínio ALBRÁS, ALUNORTE e  ALUMAR.

 Estas indústrias, todas estrangeiras, compram energia de Tucuruí por 23 dólares, ou seja, bem abaixo do custo de produção. Somente o subsídio dado ‘a empresa norte americana ALCOA, dona da Albrás e Alumar, é de mais de 200 milhões de dólares por ano. Este subsídio, que vem sendo dado há 20 anos, poderia, por exemplo, ter sido gasto para assentar 514.000 famílias pelo Programa de Reforma Agrária.  

 8. Energia para quê? Para quem?

  O maior consumo é do setor industrial, e dentro deste destacamos os denominados eletrointensivos, ou seja, que consomem muita energia. São eles: Siderurgia, alumínio, papel e celulose.

 Outras características destas empresas, além do alto consumo, são altamente poluentes, produzem para exportação (ver TABELA 1), além de gerarem poucos empregos (ver QUADRO 3).

 Tabela 1: Distribuição por setor Industrial da Produção para o Mercado Interno e para a Exportação.

 Setores  Selecionados da  Industria Pesada

Produção para o Mercado Interno (%)

Produção para o Mercado Externo (%)

Alumínio

28,7

71,3

Ferro-ligas

47,8

52,2

Siderurgia

59,4

40,6

Petroquímica

73,5

26,5

Celulose

56,7

43,3

Fonte: BRACELPA (1997,1998); ABAL (2000, 2001); MME (1997).

 A tabela acima mostra que o Brasil é um dos maiores exportadores de energia subsidiada em forma de alumínio, ferro liga, papel, celulose, e outros produtos de alta demanda de energia. Isto significa, na prática, que estas matérias primas são exportadas e voltam de forma industrializada. Este modelo pouco contribui para o desenvolvimento do país.

 Para produzir uma tonelada de alumínio é preciso 15.000 kWh de energia. Isso equivale a nove anos de consumo de energia de uma família. Porém, essa mesma indústria eletrointensiva praticamente não produz emprego. Enquanto uma indústria da área de alimentação produz  70,2 empregos por GWh consumidos, a indústria de alumínio  produz  2,7 empregos por GWh consumido.

 Enquanto a energia é utilizada desta forma, 5.074.400 de residências  não  tem acesso  à energia elétrica no Brasil, o que equivale a 20.297.600 habitantes.

9.Alternativas Energéticas

 É possível atender ‘as necessidades de água e energia do povo brasileiro, através de outro modelo, sem expulsar a população para as favelas e periferias das cidades, sem destruir  nossos rios, nossas florestas e nossa fauna. Sem ter que entregar o controle da água, da energia e da terra aos grandes grupos econômicos. Abaixo apresentamos algumas alternativas baratas e viáveis.

 Repotenciação das Usinas com mais de 20 anos:  Repotencializar tem o sentido de reformar, redimensionar,  modenizar equipamentos, reativar hidrelétricas ou turbinas paradas. Em recente edição do livro, “A repotenciação de Usinas Hidrelétricas como Alternativas para o Aumento da Oferta de Energia no Brasil com Proteção Ambiental”, os pesquisadores Célio Bermann, José R C. da Veiga e Georges Souto Rocha, descrevem que a repotenciação de antigos empreendimentos hidroelétricos é a melhor alternativa para disponibilizar mais energia no sistema elétrico. É de baixo custo, não tem impacto ambiental e pode ser feito rapidamente. Podemos acrescentar até 7.600 MW no sistema reabilitando e promovendo reparos e melhorias nas usinas já existentes. O custo por MW nestes reparos seria de 1/3 a 1/5 do custo do MW em uma usina nova.

 Redução das perdas no sistema elétrico: O sistema elétrico brasileiro tem perdas operacionais e técnicas da ordem de 15%. Se o Brasil adotasse um índice de perdas de 6%, considerado como padrão internacional, o sistema elétrico teria um acréscimo equivalente a 6.500 MW de potência instalada (ou mais da metade da Usina de Itaipu, que possui 12.600 MW).  

 Geração de Energia a partir da Biomassa: Somente utilizando o bagaço da Cana de Açúcar poderíamos aumentar em 3.000 MW o potencial instalado. Poderíamos ainda utilizar Casca do arroz, serragem, resíduos do papel e celulose.

 Economia: A crise energética de 2002 mostrou que podemos economizar energia elétrica. Segundo o Professor da UFRJ e assessor do MAB, Carlos Vainer,  o problema é que como a energia virou mercadoria, para obter lucro, as empresas não têm interesse em promover um programa sério de economia. Pelo contrário, há um incentivo ao consumo.

 Geração de Energia Eólica: O Brasil tem um potencial eólico (energia dos ventos) da ordem de 29 mil MW. Os maiores potenciais estão no Nordeste (Ceará e Rio Grande do Norte). Os estados do Rio de Janeiro, Paraná e Rio Grande do Sul também têm bom potencial energético.

 Geração através da Energia Solar e Fotovoltaica: O Brasil tem lugares privilegiados devido à insolação. A bacia do Rio São Francisco tem condições excepcionais. Esta seria uma boa alternativa para as propriedades rurais distantes da rede de distribuição.

 Todos estes desafios apontam para a necessidade de um aprofundamento no estudo e no debate sobre formas de produzir energia, formas de utilizar energia e sobre o modelo de desenvolvimento. Estamos novamente sendo bombardeados com notícias de nova ameaça de falta de energia. Isso incentiva a construção de novas barragens, dá garantias de lucro ‘a iniciativa privada, ignorando impactos ambientais e sociais.   

 Não temos todas as respostas, mas sim sugestões sobre a necessidade do debate sobre o modelo energético. Vejam algumas propostas para  a formulação de uma nova política energética. Esta deve:

  Suspender os subsídios aos grandes consumidores.

  Garantir  água e energia: dois bens estratégicos para nossa soberania sob controle e ‘a serviço do povo brasileiro. Precisamos parar com a privatização e a mercantilização do setor.

  Garantir  energia elétrica e água para todas as famílias do país;

  Contemplar a participação da população no planejamento, decisão e execução de projetos energéticos;

  Garantir que nenhuma barragem seja construída sem o consentimento prévio e informado das populações atingidas;

  Executar as dívidas das empresas elétricas privatizadas e retomar o controle público estatal sobre o setor;

  Priorizar as questões sociais e ambientais, resgatando a dívida social e ambiental do setor nas barragens construídas e em construção, através da reparação das perdas das populações atingidas;

  Corrigir  as distorções existentes no setor energético, acabando com os desperdícios na transmissão, distribuição e consumo de energia;

  Priorizar investimentos em pesquisa, no desenvolvimento e na implementação de fontes energéticas alternativas, respeitando critérios de economicidade e sustentabilidade ambiental;

  Ter uma política de preços, com baixo custo ao povo brasileiro, em especial aos trabalhadores de baixa renda.

11. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 MAB. A Crise do Modelo Energético: Construir um outro modelo é Possível. Brasília-DF: MAB, 2001.

 Bermann, Célio. Energia no Brasil:para quê? Para quem?Crise e Alternativas para um país  sustentável. São Paulo.Livraria da Física: FASE, 2001.

 WCD. Barragens e Desenvolvimento: Um novo Modelo para Tomada de Decisões. Relatório da Comissão Mundial de Barragens. WCD,2000.

 MME. O Novo Modelo do Setor Elétrico. 2004 

 WWF-Brasil. A Repotenciação de Usinas Hidrelétricas como  Alternativas Para o Aumento da Oferta de Energia no Brasil com Proteção Ambiental. 2004

  

* Marco Antonio Trierveiler, Gilberto Cervinski, Luiz Dalla Costa e Eduardo Zem são membros da Coordenação Nacional do Movimento dos Atingidos Por Barragens- MAB.