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Relatórios


Os quase 25 anos de estagnação da renda per capita, com congelamento da péssima distribuição de renda e da riqueza, o irresponsável atrelamento aos capitais internacionais de curto prazo e a permanência de política econômica de corte neoliberal nos anos 90 não poderiam resultar em outro cenário que não o de predomínio da pobreza e de avanço da desestruturação social.

 

 A Exclusão Social no Brasil e no Mundo

* Marcio Pochmann

 A exclusão social tem geralmente sido tratada no Brasil a partir de um enfoque relacionado à restrição de renda. São definidas linhas de pobreza e a partir de então estruturados programas de transferência de renda, que muitas vezes desconsideram a realidade mais ampla do mercado de trabalho e da exclusão social [1].

 Pouca prioridade tem sido dada aos novos processos de geração de exclusão social, bem como à relação entre exclusão social e concentração de renda. Este texto procura partir destes enfoques, além de apontar para uma nova metodologia de cálculo da exclusão social, que possa servir de parâmetro para comparações internacionais. Antes, porém, realiza-se uma discussão da exclusão social em termos históricos.

 No caso brasileiro, a exclusão social configura-se como marca inquestionável do desenvolvimento capitalista brasileiro. A escravidão, predominante durante mais de três séculos no país, apresenta-se como o regime de exclusão social por excelência.

 E mesmo com a abolição da escravatura, o precário acesso dos negros aos direitos civis, no último quartel do século 19, bem como a presença nas ocupações inferiores no mercado de trabalho, além da predominância de uma inatividade forçada e de acesso a empregos eventuais, não se proporcionou formas minimamente dignas de acesso à cidadania para parte expressiva da sociedade brasileira.

 Somente da Revolução de Trinta é que o país passou a difundir os direitos políticos, com a universalização do voto para todos, salvo os analfabetos. Apesar do avanço inquestionável, isso ainda se mostrou insuficiente para que a incorporação pudesse ser ampla. Por outro lado, a presença dos direitos sociais, fortalecida com o governo de Getúlio Vargas, esteve contida apenas e tão somente para assalariados formais que se encontravam empregados nas cidades.

 A maior parte da população, que se localizava no meio rural ficou excluída legalmente do acesso aos direitos sociais e trabalhistas até a década de 1960. Com o Estatuto do Trabalhador Rural, em 1963, e a instalação do Funrural, em 1967, a população do campo passou a ter acesso gradualmente aos direitos sociais e trabalhistas. Estes foram homogeneizados entre população rural e urbana somente em 1988, a partir da aprovação da nova Constituição Federal.

 De fato, a Constituição de 1988 baniu o conceito de cidadania regulada, que permitia o acesso à saúde e à previdência social tão somente para empregados com contrato formal de trabalho. O advento do Sistema Único de Saúde (SUS) e a inovação da seguridade social ampliaram o acesso aos direitos sociais, uma vez que a experiência de universalização de direitos era praticamente inexistente. Somente em 1974, por exemplo, foi constituída, pela primeira vez, a oferta de benefícios sociais não contributivos (Programa de Integração Social e benefício de valor continuado).

 Apesar disso, a exclusão social no Brasil permaneceu manifestando-se generalizadamente. De um lado, a velha exclusão continuava sendo a marca das regiões geográficas menos desenvolvidas, diante da permanência da baixa escolaridade, da pobreza absoluta no interior das famílias numerosas e da desigualdade nos rendimentos. De outro lado, a nova exclusão social também mostra a sua face no Brasil de hoje, expandindo-se rapidamente pelas grandes metrópoles, por intermédio do desemprego generalizado e de longa duração, do isolamento juvenil, da pobreza no interior de famílias monoparentais, da ausência de perspectiva para parcela da população com maior escolaridade e da explosão da violência.

 A despeito do significativo avanço econômico, com taxas médias de variação do Produto Interno Bruto ao ano de quase de 7,5%, nota-se que durante o período de 1960/1980 a totalidade da população nacional terminou não tendo acesso satisfatório aos resultados do progresso material do capitalismo brasileiro.

 Por outro lado, para o período de 1980 e 2000, a evolução da exclusão social sofreu uma profunda modificação. Ao contrário do que ocorreu anteriormente, agora manifesta-se a combinação de baixa expansão das atividades econômicas com o avanço do regime político democrático (1985/2000).

 A retomada da democracia brasileira, com reorganização da vida partidária e da dinâmica eleitoral, com fortalecimento do sindicalismo e das organizações sociais foi compartilhada pelo constrangimento decorrente da ausência do crescimento econômico sustentado. Ressalta-se, contudo, que essa situação pós 1980 deveu-se muito à herança de esgotamento do padrão de financiamento da produção transcorrido durante o final do regime autoritário, que coincidiu com o agravamento da crise econômica internacional.

 Entre 1980 e 2000, a renda per capita nacional cresceu tão somente 0,36% como média anual, bem abaixo do que se verificou no período anterior (1960/80), quando a renda per capita aumentava em média 4,58% anualmente. Além de certa estagnação na evolução da renda per capita nacional, assistiu-se ao predomínio de uma forte oscilação nas atividades econômicas, acompanhada da manifestação de um longo regime hiperinflacionário (1979/1994).

 Diante do débil comportamento econômico, o desempenho do mercado de trabalho foi negativo. Por um lado, a expansão do emprego assalariado foi decepcionante, sendo responsável pela queda na taxa de assalariamento formal que resulta da comparação entre os empregados assalariados com carteira assinada e o total das ocupações.

 Por outro lado, o país registrou uma significativa elevação tanto nas ocupações precárias (assalariados sem registro em carteira, autônomos e ocupados não remunerados) como no desemprego. Este cresceu a uma taxa média anual de mais de 13% durante os anos noventa, enquanto as ocupações informais aumentaram, em média, 2,4% anualmente. A brutal perda de participação dos salários na renda nacional – queda de 45% para 36% ao longo da década de 1990 - revela também a clara presença do movimento de desestruturação do mercado de trabalho nacional. 

 Nesse contexto econômico desfavorável, o fenômeno da mobilidade social foi enfraquecido, mesmo com o avanço da escolaridade da população e a maior cobertura social de cursos de capacitação profissional. Como reflexo, tem lugar um movimento de metropolização da pobreza - as grandes cidades que, até o final da década de 1970, eram fonte de imigração por conta das oportunidades de emprego e vida melhor assumiram o papel de mais recente de centros de desemprego, poluição, enchentes e violência.

 Não causa surpresa a revelação do fato de o país ter se tornado uma referência mundial com responsável pela emigração de mão-de-obra qualificada, geralmente jovem. Na outra ponta, a explosão da violência urbana revelou de maneira combinada com a desigualdade, o desemprego e a escassez de perspectiva mobilidade social ascensional, as condições de produção e reprodução da nova exclusão social.

 Em síntese, mesmo sem ter vencido plenamente a velha exclusão, o Brasil passou a despontar pelo avanço mais recentemente da nova exclusão social.

 Chama a atenção o fato de o Brasil ter passado por situações tão distintas sem que terminasse realizando as reconhecidas reformas clássicas do capitalismo contemporâneo. Da mesma forma, a reforma tributária que propiciasse a justiça fiscal continua a ser postergada. Enquanto ricos praticamente não pagam impostos, são os pobres que contribuem para a manutenção de uma carga fiscal total, que tem 1/3 a cada ano sendo comprometida, mais recentemente, com o pagamento do serviço do endividamento público.

 A ausência de uma reforma social, capaz de possibilitar a distribuição justa da renda nacional, termina impondo não apenas a maior desigualdade de renda como uma pressão adicional no interior do mercado de trabalho. Diante da insuficiência de renda, o país tem mais jovens deslocando-se precocemente do sistema escolar para o mundo do trabalho, ao mesmo tempo em que aposentados e pensionistas não abandonam seus postos de trabalho e empregados aceitam maiores jornadas de trabalho, seja pela ampliação das horas extras, seja pela dupla ocupação.

 Isso não quer dizer que o país tenha se mantido estagnado socialmente nos últimos 40 anos. A redemocratização, a aprovação da Constituição de 1988 e a expansão das políticas sociais nas esferas estadual e municipal contribuíram para uma melhoria dos indicadores de educação e saúde. Mas, simultaneamente, nos últimos vinte anos, a exclusão social foi reforçada por novos processos. 

 Neste sentido, a velha exclusão social não desaparece. O problema dos baixos níveis de renda e instrução se mantém, mas agora sob nova forma. O desemprego e a informalidade contribuem para romper os vínculos sociais numa sociedade cada vez mais competitiva, onde existe uma sede por padrões de consumo mais sofisticados e na qual a violência desponta como sintoma máximo da dessocialização.

 Desta forma, a exclusão social, tanto a velha como a nova, somente pode ser entendida a partir de uma compreensão da dinâmica geradora de excluídos sociais, de “desestabilização dos estáveis” que traz para parcelas crescentes da sociedade brasileira sua “instalação na precariedade”[2]. Ao conjunto dos tradicionais “despossuídos” do passado, agora se junta uma legião de “deserdados”, às vezes com níveis médios de instrução relativamente elevados, em virtude do crescente fracionamento da antiga classe média. 

 A nova dinâmica da exclusão social parece encontrar sua origem nos anos 80, assumindo feições mais definidas na década de 1990. O processo de financeirização da economia, especialmente na América Latina, ao gerar uma pressão suplementar sobre o processo de valorização do capital, implica uma flexibilidade crescente dos salários e do emprego [3]. Em vez de adiantar crédito, o sistema financeiro reorienta a poupança para os títulos públicos. Gestam-se, portanto, novos mecanismos de manutenção e ampliação da riqueza.

 Em sociedades profundamente desiguais e com baixo dinamismo econômico, como é o caso brasileiro, a expansão da exclusão social somente deve ser compreendida como a outra face de um processo estéril de concentração da renda e da riqueza. Tal fica patente quando são analisados os dados das duas últimas décadas.

 Ao se considerar o período de 1980 a 2000, observa-se uma elevação do percentual de famílias ricas no Brasil, de 1,8% para 2,4%. Em segundo lugar, a distância entre a renda média das famílias ricas e a renda média do total das famílias brasileiras passou de 10 para 14 vezes. A cidade de São Paulo, que possuía 23,4% das famílias ricas do país em 1980, saltou para uma participação na “riqueza” total do país de 40%. Finalmente, no ano 2000, verifica-se que as 10 cidades com maior número de famílias ricas concentravam 60% da massa de renda das famílias abastadas do país [4].

 Trata-se de uma sociedade crescentemente cindida e polarizada socialmente, onde a expansão dos ricos não está mais associada a um longo circuito da renda que envolve investimento e a montagem de complexas cadeias produtivas. Ao contrário, conforma-se um circuito restrito de ampliação da riqueza, que ao invés de gerar empregos, vive da permanente asfixia das esferas da produção e do trabalho.

 Daí a necessidade de se criar novos parâmetros de mensuração da exclusão social, que permitam elucidar as suas novas formas de manifestação. Entretanto, as comparações internacionais geralmente não consideram nos seus rankings de países mais avançados em termos sociais variáveis como pobreza, desigualdade, violência e desemprego.

 Uma tentativa de superar esta limitação, a partir da criação de um indicador de Exclusão Social (IES), permitiu apurar novas indícios de uma realidade social profundamente precária, especialmente nos países da América Latina [5].

 O resultado do IES indica que o Brasil disputa a posição de pior distribuição de renda do planeta, juntamente com Serra Leoa e Guatemala, e possui taxas de homicídio superiores a países em guerra civil. Assim, não causa surpresa reconhecer que o Brasil encontra-se na impressionante 109ª posição do IES, para um total de 175 países pesquisados. Ou seja, a 15ª economia mundial e dona do 31ª maior renda per capita do planeta situa-se, em termos de exclusão social, no bloco de países com as piores posições em termos de desenvolvimento material.

 Em outras palavras, longe da discussão acerca de se o país deveria subir uma ou duas posições no IDH, o IES mostra que o “buraco é mais embaixo”. Os quase 25 anos de estagnação da renda per capita, com congelamento da péssima distribuição de renda e da riqueza, o irresponsável atrelamento aos capitais internacionais de curto prazo e a permanência de política econômica de corte neoliberal nos anos 90 não poderiam resultar em outro cenário que não o de predomínio da pobreza e de avanço da desestruturação social. 



* Professor livre docente licenciado do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Universidade Estadual de Campinas. Secretário do Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade do Município de São Paulo.

[1] Para um enfoque alternativo, pautado no acesso a políticas universais, e que articula programas de transferência de renda a programas emancipatórios, ver a experiência da Prefeitura de São Paulo, Outra Cidade É  Possível: Alternativas de Inclusão Social em São Paulo, São Paulo: Cortez, 2003.

[2] CASTEL, Robert (1998), As Metamorfoses da Questão Social: Uma Crônica do Salário. São Paulo: Vozes.

[3] SALAMA, Pierre(1999), Pobreza e Exploração do Trabalho na América Latina, São Paulo: Boitempo Editorial.

[4] Ver estas informações em Atlas da Exclusão Social: Os Ricos no Brasil, volume 3, São Paulo: Cortez, 2004.

[5] Atlas da Exclusão Social: A Exclusão no Mundo, volume 4, São Paulo: Cortez, 2004.