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Relatórios
 

A suposta prevalência ética do Ministério Público em face das outras instituições tem o DNA do autoritarismo e a marca da deficiência ética de todos que se julgam superiores aos demais.

Ministério Público: Poder de investigar ou dever de controlar

(Em memória da companheira Maricélia Valência, advogada popular. Seguindo na luta.)

* Aton Fon Filho

 Depois que os ministros Marco Aurélio de Mello e Nelson Jobim manifestaram em votos seu entendimento de que a Constituição Federal não autoriza o Ministério Público realizar investigações criminais, integrantes dessa instituição desencadearam uma campanha visando a obter apoio social para uma decisão que lhes garantisse os poderes investigativos.

 A discussão, que deveria ser apenas de ordem jurídica e institucional, transbordou esses limites, adquiriu outros contornos de histeria e se espalhou pela sociedade brasileira, em especial entre os militantes da área de Direitos Humanos.

A QUESTÃO JURÍDICA

 A questão jurídica envolvida tem sido a primeira vítima desse processo de discussão, por isso, iniciemos por ela.

 A Constituição Federal delimitou, no art. 129, as funções do Ministério  Público[1]. Elenca a propositura da ação penal pública, de modo privativo, e da ação civil pública. Atribui-lhe “promover” o inquérito civil e a ação de inconstitucionalidade, mas no que toca ao inquérito penal dispõe que compete ao Ministério Público “requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial”. Já daí não poderia caber nenhuma dúvida de que em nosso ordenamento não tem abrigo a pretensão de que os promotores de justiça possam ser titulares da investigação policial.

 Mas, não fosse isso suficiente, no art. 144 ficam expressamente definidos os órgãos que exercem a segurança pública, limitados às polícias federal, rodoviária federal, ferroviária federal, civis, militares e aos corpos de bombeiros militares. Às polícias federal e civil é atribuída expressamente a investigação das infrações penais.[2] E novamente nenhuma menção a poderes investigativos do Ministério Público.

 A ausência de qualquer atribuição expressa de poderes investigativos ao Ministério Público na Constituição Federal não tem caráter aleatório, mas é decorrente da sistemática dos freios e contrapesos sempre adotada. Isso porque, sendo o Ministério Público o titular da ação penal, quis o constituinte fosse outro organismo a coletar os elementos informativos daquela, visando exatamente a garantir os direitos das pessoas ante a possível – previsível, poder-se-ia dizer – atitude autoritária do ente estatal.

 Não sendo aleatória, não é, por outro lado, desprovida de significado. Uma das mais preocupantes atitudes nesse debate consiste em afirmar – não em artigos ou qualquer meio permanente, mas em discussões informais – que se a Constituição não autoriza, também não proíbe o Ministério Público de conduzir investigações criminais.[3] A afirmação é uma fraude porque, ao contrário do que se refere aos direitos do cidadão, quando se considera permitido tudo que não é legalmente proibido, no que se refere aos poderes do Estado, se considera proibido tudo que não seja expressamente autorizado.

 Inconformados com a proibição constitucional, representantes da tese autoritária do MP têm buscado se firmar no entendimento de que, sendo o promotor de justiça o titular da ação penal, a ele está dirigido o inquérito policial. E sendo a ele dirigida a investigação, deve ser dele o direito de investigar[4].

 O argumento não poderia ser mais falacioso. Para começar, porque o inquérito policial é instrumento preliminar de coleta de elementos, não excluindo a atuação do promotor de justiça no processo, quando ele próprio é o responsável pela produção de provas. Depois, porque o fato de ser o titular da ação penal não faz dele o destinatário das provas produzidas, sendo este, em última análise e sempre, o magistrado que as examinará para proferir decisões.[5]

 De outra parte, nada impede, ao contrário, a Constituição determina, que o Ministério Público exerça o controle da atividade policial e que requisite a instauração do inquérito criminal e realização das diligências investigativas que julgar adequadas, desde que fundamente juridicamente seu entendimento.

 Esse poder do MP não pode ter sua importância diminuída, ao contrário do que se vem pretendendo, particularmente quando se justifica a atuação investigativa do MP com a ineficiência, o corporativismo ou a corrupção policiais.

 Responsável pelo controle da atividade policial e pela fiscalização do inquérito criminal, o promotor de justiça é guardião da sanidade e eficiência da investigação e da polícia, tendo lhe cabido já desde antes, no acompanhamento do inquérito determinar as atividades investigativas que a seu juízo forem necessárias e responsabilizar a autoridade e o servidor policial que se omitirem do cumprimento do dever legal. O abandono desse papel em prol da assunção direta da função policial permite que vicejem descontrolados no organismo policial exatamente aqueles vícios que se alega seriam indutivos da atividade investigatória do promotor de justiça.

 Com o argumento da necessidade de suprir a ineficiência policial, os representantes dessa tese logram apenas agir como a autoridade que aconselha o cidadão a não sair à noite, dado o risco de assalto, em lugar de promover a segurança pública.

 Não é, pois, o reconhecimento de que o Ministério Público não tem atribuição de promover investigação criminal que o diminui, mas seu próprio entendimento de que os promotores de justiça devam vestir a condição de agentes policiais, em lugar de serem controladores da polícia.

A QUESTÃO ÉTICA

 Contrária ao direito, a defesa dos supostos poderes investigativos do Ministério Público implica também um grave confronto com a ética democrática e dos direitos humanos.

 Ferida pelo crime e pelo medo, a sociedade se vê desprotegida muitas vezes pela omissão da instituição policial; outras tantas, pela ação criminosa. Em tal ambiente não costumam faltar aqueles que se apresentam como os paladinos da lei e da ordem, e que, com o espectro da marginalidade e da corrupção pretendem que a sociedade lhes autorize violar a lei, para supostamente defendê-la.

 Nesse particular, o argumento de que a sociedade precisa do MP investigando (ainda que isso seja inconstitucional), porque somente este poderia eficientemente enfrentar a corrupção e o crime, não é diferente daquele que invocavam os integrantes de esquadrões da morte, uma vez que também estes se vendiam como defensores da sociedade contra criminosos protegidos por leis ineficazes.

 Afrontada e atemorizada pelo crime e desprotegida pela falta ou ineficiência da atuação policial a sociedade busca defensores em outras partes, em lugar de buscar a submissão da polícia ao dever legal. Já tentou isso outras vezes, invocando a atuação das Forças Armadas na luta contra os marginais. Com o resultado, de todos conhecido, de envolvimento de militares com a criminalidade.

 Fale-se da polícia, das Forças Armadas ou de quem quer que seja, não se pode dizer que tal ou qual órgão seja mais ou menos sujeito à corrupção e à ineficiência. O que importa é reconhecer que inexiste qualquer condição intrínseca ou qualquer vacina que, diferenciando um promotor de justiça e um procurador da República de um delegado da polícia civil ou federal, pudesse imunizar aqueles e não estes contra a corrupção e a sedução do crime.

 A suposta prevalência ética do Ministério Público em face das outras instituições tem, assim, o DNA do autoritarismo e a marca da deficiência ética de todos que se julgam superiores aos demais.

 E, no entanto, pode-se afirmar que se a polícia não pode contar com uma vacina contra o crime e contra a corrupção, dispõe de um poderoso antibiótico, se convenientemente aplicado, isto é, se aplicado como manda a Constituição: a ação controladora do Ministério Público.

 Por isso, a defesa de uma atividade investigativa criminal do Ministério Público traz também a nota antiética da omissão do cumprimento do dever legal e da permissão para que policiais ineficientes, omissos e criminosos sigam violando a lei e afrontando a sociedade.

 A ética da defesa da sociedade, a ética da defesa dos direitos humanos não pode, por sua vez, ceder à chantagem dos supostos paladinos da luta contra a corrupção, permitindo que tantos militantes comprometidos com a proteção da cidadania e dos direitos humanos se vejam caudatários da defesa da violação da lei em nome da melhor repressão das infrações a ela.

 Autoritária e abusiva, a atividade policial que o Ministério Público se pretendeu outorgar foi submetida ao crivo de outro Poder, igualmente independente e com funções igualmente definidas constitucionalmente: o Judiciário.

 A meio caminho da jornada do julgamento interrompido por pedido de vista, desencadeou-se a atual campanha em que, a par de se assustar a sociedade, busca-se jogá-la contra os julgadores, atribuindo a estes a possibilidade de superveniência de nulidade do trabalho realizado pelos promotores de justiça e procuradores da República, com abuso de poder.

 Afirma-se que da decisão do STF que reafirme a autoridade da Constituição decorrerá a impunidade de pessoas acusadas em ações penais decorrentes do suposto poder investigativo do MP. Oculta-se que, assim como as confissões obtidas com emprego de tortura, os atos já eram nulos ao tempo em que foram produzidos, de forma que não é da responsabilidade dos ministros do STF torná-los válidos, cabendo-lhes apenas reconhecer sua imprestabilidade.

 É hora de acordar!

 É hora de ver que no mesmo posto onde outrora segmentos sociais pretenderam entronizar violadores da lei travestidos de defensores da sociedade, corre-se o risco de ver outros alçados.

 O Ministério Público precisa se orgulhar de suas funções constitucionais e exercê-las com completude. Mas esse compromisso com a lei exige dele que à Constituição se subordine, como exige dele que imponha à polícia a mesma subordinação.

 O Ministério Público merecerá nossa admiração e nosso orgulho se for capaz de exercer seus poderes constitucionais, inclusive o de fazer a polícia investigar, em lugar de se render e buscar assumir funções que não lhe competem.

* Aton Fon Filho é advogado, diretor da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos e diretor do Sindicato dos Advogados do Estado de São Paulo


[1] Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:

I - promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei;

II - zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia;

III - promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos;

IV - promover a ação de inconstitucionalidade ou representação para fins de intervenção da União e dos Estados, nos casos previstos nesta Constituição;

V - defender judicialmente os direitos e interesses das populações indígenas;

VI - expedir notificações nos procedimentos administrativos de sua competência, requisitando informações e documentos para instruí-los, na forma da lei complementar respectiva;

VII - exercer o controle externo da atividade policial, na forma da lei complementar mencionada no artigo anterior;

VIII - requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais;

IX - exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade, sendo-lhe vedada a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas.

[2]Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:

I - polícia federal;

II - polícia rodoviária federal;

III - polícia ferroviária federal;

IV - polícias civis;

V - polícias militares e corpos de bombeiros militares.

"§ 1º A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se a:"

I - apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei;

II - prevenir e reprimir o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o contrabando e o descaminho, sem prejuízo da ação fazendária e de outros órgãos públicos nas respectivas áreas de competência;

"III - exercer as funções de polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras;"

IV - exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União.

"§ 2º A polícia rodoviária federal, órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se, na forma da lei, ao patrulhamento ostensivo das rodovias federais."

"§ 3º A polícia ferroviária federal, órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se, na forma da lei, ao patrulhamento ostensivo das ferrovias federais."

§ 4º - às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.

[3] Esse trecho estava escrito quando tive conhecimento de texto que circula na Internet e é atribuído a um dos maiores, senão o maior defensor brasileiro dos direitos humanos, o ex-procurador e vice-prefeito de São Paulo, Dr. Hélio Bicudo, do qual consta a frase textual:

Na verdade a Constituição não precisaria autorizar expressamente o que se pretende proibido, ante a meridiana conclusão de que aquilo que não é proibido, é naturalmente permitido”.

[4]O Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula nº 234, na qual diz que “a participação do membro do Ministério Público na fase investigatória criminal não acarreta o seu impedimento ou suspeição para o oferecimento da denúncia”.
Diante disto, como o Ministério Público é o titular da ação penal pública, estando dotado dos poderes de requisição de documentos, de perícias, de oitiva de testemunhas e de interrogatórios de suspeitos, pode validamente investigar quando o interesse público o exigir, ou seja, quando o Promotor de Justiça visualizar, na situação concreta, que a investigação policial não será feita a contento ou que não está sendo bem conduzida, Como destinatário final das provas produzidas, ele pode e deve validamente investigar, a fim de conseguir êxito na ação penal a ser proposta.” (Deputado Luiz Antônio Fleury Filho, Revista eletrônica Cidades do Brasil, edição 51, junho de 2004, http://www.cidadesdobrasil.com.br/cgi-cn/news.cgi?cl=099105100097100101098114&arecod=18&newcod=784. O deputado Fleury, como se sabe, é Procurador de Justiça aposentado em São Paulo)

[5] Lembrando aqui que a lei 9.034/95 teve seu art. 3º declarado inconstitucional pelo STF, na ação de inconstitucionalidade ADI 1.570 movida pela Procuradoria-Geral da República questionando o dispositivo que assegurava poderes investigatórios aos magistrados. E lembrando ainda que, anteriormente, na ADI 1517 tinha sido negada medida liminar suspendendo a eficácia do mesmo artigo. Esta ADI fora ajuizada pela ADEPOL-Associação dos Delegados de Polícia. O dado serve também para repelir argumentação esgrimida pelo MP, no sentido de que quanto mais gente investigar é melhor. Pelo menos quando da ADI 1570 não se pensava assim.