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                   Após
                  a criminalização de práticas racistas pela Constituição
                  Federal de 1988, foi promulgada a Lei 7.716/89, que trata dos
                  crimes resultantes de preconceito de raça ou cor. Esta lei
                  foi posteriormente modificada em alguns artigos contidos na
                  Lei 9.459/97. A injúria qualificada também foi tipificada,
                  especificamente no art. 140, § 3º do Código Penal
                  brasileiro. Devemos salientar que o Brasil foi o primeiro país
                  em todo o continente americano a regular práticas racistas
                  através de legislação específica. 
                  
                   
                  Poder
                  Judiciário e a Questão Racial 
                  
                   
                  * Rodnei
                  Jericó da Silva 
                  
                   
                   O
                  presente artigo tem o objetivo de fazer uma pequena análise
                  do dia a dia das vítimas de racismo e discriminação racial
                  e a conduta que o poder judiciário tem tido em situações de
                  violações de direitos humanos destas pessoas. 
                  
                   
                   A
                  história brasileira contemporânea tem como marco legal a
                  Constituição Federal de 1988, trazendo consigo princípios e
                  regras que balizam a sociedade. Aqui tomarei a liberdade de
                  adotar o conceito dado pelo Professor Fábio Konder Comparato,
                  sobre seu entendimento sobre princípio, que diz:
                  
                   
                  “Princípio
                  é norma de grande generalidade e se situa no cume do sistema
                  constitucional”. 
                  
                   
                   Devemos
                  salientar ainda que a eficácia de tais princípios é
                  verificada através de regras e normas, seja no plano
                  nacional, seja no plano internacional. A Constituição
                  Federal em seu art. 1º, inciso III, fala sobre o respeito
                  ‘a dignidade humana. Isto me remete automaticamente a uma
                  reflexão sobre as condições mínimas necessárias para que
                  um ser humano possa sentir-se digno. Conseqüentemente, também
                  me remete a uma reflexão dos direitos fundamentais que devem
                  ser respeitados, seja pelo Estado, seja por indivíduos
                  inseridos em nosso plano constitucional e também em normas e
                  regras de direito internacional, a exemplo dos direitos civis
                  e políticos, e ainda dos direitos sociais, econômicos e
                  culturais. O art. 5º caput fala sobre o princípio da
                  igualdade, isônomia entre todos, sem qualquer distinção,
                  seja de raça, religião ou qualquer outra. 
                  
                   
                   Dentro
                  de tais regras constitucionais, o art. 5º, inciso XLII
                  determina que a prática de racismo é crime imprescritível e
                  inafiançável. Se fizermos um breve levantamento histórico
                  da legislação específica sobre o tema, veremos um grande
                  avanço até a Constituição Federal de 1988. 
                   Inicialmente,
                  o racismo era tratado como simples contravenção penal. Em
                  exemplo dado pelo atual Ministro do Supremo Tribunal Federal,
                  Dr. Nelson Jobim, o cidadão ou cidadã que deixa em parapeito
                  de janela de edifício vaso de plantas, correndo o risco de
                  que um dia este caia e acerte outra pessoa na calçada,
                  incorre em contravenção penal. 
                   Após
                  a criminalização de práticas racistas pela Constituição
                  Federal de 1988, foi promulgada a Lei 7.716/89, que trata dos
                  crimes resultantes de preconceito de raça ou cor. Esta lei
                  foi posteriormente modificada em alguns artigos contidos na
                  Lei 9.459/97. A injúria qualificada também foi tipificada,
                  especificamente no art. 140, § 3º do Código Penal
                  brasileiro. Devemos salientar que o Brasil foi o primeiro país
                  em todo o continente americano a regular práticas racistas
                  através de legislação específica. 
                  
                   
                   No
                  âmbito internacional podemos nos valer do principio da não
                  discriminação, e em casos particulares da possibilidade do
                  Estado adotar políticas de discriminação positiva para a
                  inclusão de populações historicamente vulneráveis. 
                  
                   
                   No
                  Projeto SOS Racismo do Geledés – Instituto da Mulher Negra,
                  ao longo de 10 anos, temos observado que embora tenhamos uma
                  legislação específica para casos concretos de racismo e
                  discriminação racial, prevalece o caráter punitivo e
                  repressivo, que tem se mostrado ineficaz para o combate a tais
                  práticas.
                  
                   
                   Em
                  ambos os casos, tanto pela Lei 7.716//89, como pelo art. 140
                  § 3º do Código Penal, a pena varia de 1 a 3 anos de reclusão,
                  e aqui passaremos a analisar a pena que geralmente é aplicada
                  a crimes desta natureza. 
                  
                   
                   Para
                  tanto ainda nos é obrigado a tecer alguns comentários a
                  respeito da Lei 9099/95, que dispõe sobre os Juizados Cíveis
                  e Criminais, este em seu art. 89, dispõe, que “os
                  crimes em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a
                  1 ano.....o Ministério Público poderá propor a suspensão
                  condicional do processo”. 
                  
                   
                   Chamamos
                  este mecanismo de sursis
                  processual, ou seja, o processo ficará suspenso entre o
                  prazo de 2 a 4 anos, desde que o autor do fato não ostente
                  qualquer outra situação que o desabone, e assim não se tem
                  processo. Geralmente é isso que a acontece em casos de
                  racismo e discriminação. 
                  
                  
                   
                   Há
                  outros casos em que o réu não aceita a suspensão, mas mesmo
                  assim poderá se beneficiar de penas alternativas, onde via de
                  regra a pena aplicada consiste no pagamento de multa, de
                  aproximadamente 1/3 do salário mínimo, ou no pagamento de
                  uma cesta básica a instituições carentes. 
                  
                   
                   Entendemos
                  ser louvável penas como estas, todavia acreditamos que haja
                  meios mais factíveis de se aplicar uma pena alternativa, para
                  que estas tenham caráter educativo, pois ninguém nasce
                  racista, as pessoas adquirem esta atitude de acordo com o
                  ambiente em que vivem. 
                  
                   
                   Desta
                  forma, temos um paradoxo em nosso ordenamento jurídico, pois
                  a Constituição Federal busca punir severamente práticas
                  racistas, e a legislação infra constitucional vem na contramão
                  deste dispositivo, pois permite que tais práticas se
                  proliferem quando aplica penas que não educam ao agressor. Não
                  queremos sustentar aqui que seja o autor do fato tolhido de
                  sua liberdade, mas sim que este entenda que práticas racistas
                  ou sexistas não têm espaço dentro de nossa sociedade. 
                  
                   
                   Para
                  ilustrar esta situação, descrevei dois casos concretos e
                  ainda ativos, nos quais temos trabalhado. Um deles é objeto
                  de demanda em cortes internacionais. O primeiro trata de uma
                  situação de racismo implícita, de difícil percepção, e o
                  segundo trata de uma situação de racismo explícita. 
                  
                   
                   No
                  primeiro caso, duas mulheres negras, desempregadas ‘a época,
                  estavam buscando através de classificados de jornais alguma
                  posição que atendesse a seu perfil, e acabaram por
                  encontrar. Assim entraram em contato com um terceira amiga,
                  que também estava ‘a procura de emprego e que também
                  atendia ao perfil pedido pelo anúncio. As duas primeiras se
                  dirigiram ao local na manhã do dia seguinte e, quando se
                  apresentaram, o entrevistador disse a ambas que todas as vagas
                  já haviam sido preenchidas. 
                  
                   
                   No
                  entanto, no período da tarde do mesmo dia, a terceira pessoa,
                  uma mulher branca, esteve no local indicado. Ao passar pela
                  entrevista, foi automaticamente admitida. Todas elas tinham o
                  mesmo perfil, haviam trabalhado em outras empresas juntas, e
                  se diferenciavam apenas pela etnia. 
                  
                   
                   O
                  caso foi levado aos tribunais, mas o juiz deu a ação por
                  improcedente, sob o fundamento de que as vítimas não tinham
                  a certeza de que haviam sido discriminadas, mesmo havendo
                  prova robusta nos autos. Houve a interposição de recurso e
                  este aguarda há quase cinco anos uma decisão do Tribunal de
                  Justiça de São Paulo. 
                  
                   
                   O
                  segundo caso trata-se de relacionamento amoroso entre um jovem
                  negro e uma jovem branca. Eles mantiveram o relacionamento por
                  aproximadamente dois anos, período em que os pais da jovem não
                  conheciam o namorado da filha pessoalmente, somente por
                  telefone, portanto não sabiam que se tratava de um jovem
                  negro. 
                  
                   
                   Quando
                  descobriram que o jovem era negro, passaram a cuidar para que
                  o relacionamento terminasse, coagiram a filha a interromper o
                  namoro, chegando a contratar um detetive particular para
                  seguir a jovem e informar onde e com quem estava a se
                  encontrar. 
                  
                   
                   Certo
                  dia a jovem estava na casa do rapaz negro e seu pai chegou
                  acompanhado de vários outros amigos, invadiu a casa do jovem
                  e retirou a filha aos berros e com agressões físicas. Ainda
                  ameaçou o jovem de matá-lo, caso não deixasse de se
                  encontrar com sua filha. Os dois foram abrigados a terminar o
                  relacionamento. 
                  
                   
                   O
                  jovem buscou o atendimento e fizemos os encaminhamentos. Em um
                  primeiro processo, o autor foi condenado nos termos da Lei
                  9099/95 ao pagamento de multa, consistente em R$ 272,00, pela
                  invasão de domicílio e pela ameaça praticada. Em um segundo
                  processo que versa sobre a discriminação racial, o réu foi
                  condenado em primeira instância e agora o processo espera
                  decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo. 
                  
                   
                   Em
                  ambos os casos, as provas produzidas foram contundentes, mas
                  qual a razão para haver 
                  decisões contrárias da Justiça? Parece que, no
                  primeiro caso, o juiz não foi tão imparcial quanto deveria.
                  Já no segundo, o juiz se ateve aos fatos e aplicou a lei de
                  forma instrumental. 
                  
                   
                   Temos
                  observado que há um despreparo dos operadores de direito no
                  Brasil para lidar com as questões raciais. Não há
                  sensibilidade suficiente para estas situações, que trazem
                  uma dano psíquico muito maior do que se possa imaginar. Por
                  esta razão é que temos buscado a tutela jurídica no âmbito
                  cível, sem deixar de lado as demandas criminais, pois também
                  são importantes. O resultado tem se mostrado muito mais
                  eficaz nas ações de responsabilidade civil, por dano moral e
                  material, praticado pelo Estado ou por indivíduos. 
                  
                   
                   Muitos
                  casos nos levam ‘a análise de que o poder judiciário ainda
                  considera que os cidadãos negros devem ser destituídos de
                  direitos, destituídos de dignidade, destituídos de alma. 
                  
                   
                  *
                  Rodnei Jericó da Silva é Advogado e Coordenador do Projeto
                  SOS Racismo – Geledés Instituto da Mulher Negra. 
                   
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