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Relatórios


Especialistas dizem que nenhum grande centro do Nordeste precisa das águas do São Francisco para abastecer sua população. É só o pretexto. O certo é que 70% das águas a serem transpostas irão para a irrigação, indústria e criação de camarão. Em todo caso, vamos dar de bandeja que o projeto irá abastecer doze milhões de pessoas do meio urbano. Seria sua motivação nobre. o que os homens da transposição nunca falam é que no Nordeste Brasileiro existem 2,2 milhões de famílias espalhadas pelas caatingas, a chamada população difusa, perfazendo aproximadamente também 12 milhões de pessoas. Essa é a população que vive em permanente insegurança hídrica, tanto do ponto de vista quantitativo, como qualitativo, como da regularidade no acesso à água.

 

Transposição x Direito Humano à Água

 Roberto Malvezzi (Gogó)*

 

1 - A Questão

 

A Transposição do São Francisco é desse tipo de cadáver que, tantas vezes enterrado, tantas vezes ressuscita, ainda que com cara de múmia. O último a levantá-lo da tumba foi o governo Lula. Dessa vez, com uma decisão imperial de fazê-lo, passando como um trem bala sobre todos que estiverem em seus trilhos. Mesmo começando, não se sabe se a obra chegará ao fim. Chegando, não se sabe de quanto tempo será sua duração. O certo é que vai consumir muito dinheiro público e jogar cizânia no relacionamento entre os estados nordestinos. O governo parece não avaliar o estrago que está causando.

Na TV o projeto aparece como a redenção do Nordeste. Uma propaganda do PT dizia inclusive que a transposição vai “acabar com a seca do Nordeste”. Seria risível se não fosse hilário, seria trágico se não fosse um desastre. Como um partido, construído com o sangue e o suor de tantos brasileiros pobres e sonhadores, pode chegar a esse nível, só a história poderá tentar explicar. Freud e Marx, com certeza, não explicam.

Pois bem, uma das promessas da transposição é o abastecimento humano das populações sedentas do semi-árido. O próprio texto do projeto é contraditório, tendo momentos que fala em 12 milhões de pessoas, outras vezes em 8 milhões, assim por diante. Seria para o abastecimento dos grandes centros urbanos do Nordeste Setentrional, inclusive Fortaleza. Especialistas dizem que nenhum grande centro do Nordeste precisa das águas do São Francisco para abastecer sua população. É só o pretexto. O certo é que 70% das águas a serem transpostas irão para a irrigação, indústria e criação de camarão. Em todo caso, vamos dar de bandeja que o projeto irá abastecer doze milhões de pessoas do meio urbano. Seria sua motivação nobre.

 

2 – O que os defensores da Transposição não falam

 

Entretanto, o que os homens da transposição nunca falam é que no Nordeste Brasileiro existem 2,2 milhões de famílias espalhadas pelas caatingas, a chamada população difusa, perfazendo aproximadamente também 12 milhões de pessoas. Essa é a população que vive em permanente insegurança hídrica, tanto do ponto de vista quantitativo, como qualitativo, como da regularidade no acesso à água. Já falei antes, mas essa é a população migrante, que está nas músicas de Luis Gonzaga, na pintura de Portinari, nos romances de Graciliano Ramos, nos poemas de João Cabral de Mello Neto. Essa população vive nesse estado porque não tem a infra-estrutura mínima para agasalhar a água nos tempos chuvosos e poupá-la para os tempos normalmente sem chuva. Por isso está exposta a qualquer variação da natureza. Enfim, essa população tem seu direito humano à água permanentemente, sistematicamente, massivamente violado.

Ignorar essa população é uma atitude histórica e sistemática de todos os projetos de desenvolvimento que já foram propostos para o Nordeste. A insegurança hídrica não se explica sem a “indústria da seca”. Embora citada fartamente na literatura social do Nordeste, nem sempre se tem a exata imagem do que ela significa. Em primeiro, significa o enriquecimento de uma elite restrita com os bens destinados para amenizar os problemas dos mais pobres em época de seca. Mas a seca só existe porque a população não está dotada de uma infra-estrutura adequada para enfrentar as variações de um clima como o semi-árido. Portanto, a indústria da seca significa a perpetuação da miséria do povo, principalmente sua necessidade de água e comida, para sustentar o poder de uma oligarquia que se vive à custa da miséria popular. Portanto, não estamos apenas diante de uma esperteza que se enriquece com o sofrimento alheio, mas de um projeto de poder que se sustenta a partir da sede e da fome. 

 

3 - Por que, então, os homens da transposição não falam dessa população difusa?

 

Exatamente porque a situação dessa população não será alterada pela a Transposição, simplesmente porque ela está fora do alcance do projeto. Como já dissemos, nem vai ver a cor da água transposta. Com isso estamos querendo dizer que a seca, o carro-pipa, as migrações, a fome, a sede, tudo vai continuar como antes no sertão dos coronéis. Quando questionados, os homens da transposição dizem: “vamos fazer cisternas e abrir poços profundos para essa população”. Na verdade, é uma concessão verbal para justificar a transposição, mas sem nenhuma conseqüência prática. Quem leva à frente a convivência com o semi-árido, o abastecimento de água para consumo humano para essas populações, é a sociedade civil. Daqui para frente, talvez por muitos anos, todos os recursos federais investido no Nordeste irão para a transposição, caso ela prospere. Ela não só vai consumir o dinheiro público, como vai bloquear o investimento massivo no que seria necessário. O problema chave é que, se o governo Lula não tem um projeto para o Brasil, muito menos o tem para o semi-árido. Então supre sua inoperância com uma mega obra como essa.

 

4 – A prioridade é o ser humano com sede e a dessedentação dos animais

 

A prioridade do “consumo humano e a dessedentação dos animais” está inscrita em nossa lei de Recursos Hídricos, a 9.433 de 1997. É uma lei baseada no valor econômico da água, não explicita o seu valor biológico, ambiental e social. Entretanto, mesmo restringindo a prioridade humana para situações de escassez, prioriza o ser humano e os animais. Legalmente, portanto, a prioridade de qualquer ação governamental no semi-árido no campo da água, deveria priorizar aqueles que não têm sequer um copo de água limpo para beber. Entretanto, ao arrepio da lei, e mesmo do bom senso, o governo prioriza uma obra que vai levar água para irrigar frutas e criar camarão. Sem dúvida, essa é uma prova dos nove da opção governamental na política dos direitos humanos.

Essa prioridade legal é absolutamente óbvia, já que sem água nenhum ser permanece vivo. É um direito natural. Mas os mercadores da água, tanto em nível nacional como internacional, estabelecem uma ruptura entre o direito natural e o direito positivo, reconhecendo a água apenas como necessidade, não como direito humano. Pasmem, estabeleceram uma ruptura entre a necessidade e o direito. Para o direito clássico a necessidade é um direito natural, sequer precisa do reconhecimento positivo.

 

5 – A luta é global

 

Hoje, reconhecer a água como direito humano, é uma batalha globalizada. Entretanto, seu reconhecimento sofre resistências de governos, empresas transnacionais da água e dos organismos multilaterais. Preferem a água apenas como uma necessidade. Impressionante a sabedoria! Mas é uma forma de tirar a castanha do fogo pela mão do gato. O acesso à água não sendo reconhecido como direito humano, livra os governos de monitoramente internacional, de ser acionado judicialmente em nível nacional e as empresas de água estão livres para cobrar o preço que quiserem e cortar a água de quem não puder pagar seu custo. Enfim, tudo como o diabo gosta, inclusive os diabos globalizados. Por isso, não é de se surpreender que o governo brasileiro também esteja empenhado e bloquear o reconhecimento da água como direito humano. Esse debate se dá nas mudanças da legislação da água proposta pela CNBB. O sinal do governo central  já veio: “água como direito humano inscrito na lei, não.”

É preciso observar que a Transposição, alicerçada na filosofia que a sustenta, insere-se na lógica mercantil da água, hoje globalizada. É o que chamamos de hidronegócio. Por isso, repetimos que a Transposição é “a última obra da indústria da seca e a primeira do hidronegócio”. Agora a própria CHESF já fala em criar “leilões de água”, isto é, já não se visa sequer a água para irrigar e criar camarão, mas para vendê-la como uma mercadoria qualquer, como se no Brasil alguém fosse proprietário de nossas águas.

Nesse sentido, não estamos mais enfrentando apenas os coronéis sertanejos, estamos enfrentado interesses poderosos do mundo inteiro e da elite brasileira globalizada. Quando os homens da Transposição perdem a censura, falam claramente que Transposição vai propiciar a produção de frutas, a criação de camarão a preços mais competitivos, já que a produção estará muito mais próxima dos portos – diga-se Pecém no Ceará – facilitando o acesso aos mercados do mundo inteiro. Nesse momento a prioridade humana é simplesmente ignorada. Quando acossados, levantam a bandeira dos doze milhões de pessoas que estão nos centros urbanos. Aliás, mesmo economicamente, essa água será tão cara que, se não for subsidiada, não terá qualquer competitividade econômica. Hoje, à beira do São Francisco, vários colonos da Codevasf estão inadimplentes exatamente porque não conseguem pagar o custo da água e a manutenção da infra-estrutura da irrigação. Enfim, o pretexto são as pessoas, o objetivo é o mercado.

Portanto, casando prática e teoria, transposição e água como direito humano, estamos nos níveis primários de sempre. Ainda não será dessa vez que teremos um projeto de desenvolvimento sério para o semi-árido brasileiro. Quanto aos que vivem em estado de insegurança hídrica em nossa região, ainda vão passar muita sede. Os que defendem a água como direito humano ainda não passam de uma gota de água doce num oceano de água salgada.   

 

* Roberto Malvezzi é membro da Coordenação Nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT)