| A
                  apropriação privada de recursos genéticos através do
                  patenteamento de sementes vem para consolidar a dependência
                  dos agricultores em relação à indústria. Com a agricultura
                  comandada pelo setor industrial e com a indústria concentrada
                  e orientada para controlar ainda mais o sistema produtivo com
                  pacotes tecnológicos agora com sementes pateteadas, a opção
                  pelo agronegócio é também a opção pelos transgênicos.
  
                  
                    A
                  opção pelos transgênicos
                  
                    Gabriel
                  Bianconi Fernandes AS-PTA
                  Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa   
                  
                   As
                  grandes negociações que demandam decisão da cúpula do
                  governo Lula sempre passaram pela Casa Civil. E no caso dos
                  transgênicos não foi diferente. O apoio político traduzido
                  em votos no Congresso era lá negociado – imaginava-se que só
                  na base da distribuição de cargos e liberação de emendas.
                  A prática fisiológica, por si só inteiramente condenável
                  para um partido comprometido com a transformação, ficou
                  pequena após as denúncias de arrecadação e desvio de
                  dinheiro para compra de deputados, que liquidou com o chamado
                  “núcleo duro” do governo. O
                  fato de deputados petistas que tiveram papel de destaque na
                  aprovação da lei de biossegurança, como Josias Gomes (BA),
                  Paulo Pimenta (RS) e Paulo Rocha (PA) estarem envolvidos nas
                  ilegalidades que fizeram ruir o governo ajuda a reforçar a
                  hipótese de que os transgênicos foram negociados e que o
                  governo de fato não via maior importância no tema. Todos
                  esses parlamentarem são altamente fiéis ao ex-ministro José
                  Dirceu. Uma
                  retrospectiva dos principais momentos em que o governo teve
                  que se posicionar sobre os transgênicos também revela outra
                  faceta da negociação. A vertente oposicionista do PMDB era
                  objeto de cobiça do ex-chefe da Casa Civil, principalmente
                  pelo desejo de unir os dois maiores partidos do Congresso em
                  uma coligação PT-PMDB para concorrer à presidência em
                  2006. Germano Rigotto, governador peemedebista do Rio Grande
                  do Sul, fazia a interlocução do governo com a ala
                  oposicionista do PMDB e também foi bastante ativo em defender
                  os interesses dos ruralistas gaúchos. Nos momentos de decisão,
                  como vimos, o Planalto acionou Rigotto. De
                  qualquer forma, mesmo antes das revelações sobre o “mensalão”,
                  a política de alianças foi se revelando um verdadeiro
                  fracasso, pois a cada votação de matérias polêmicas ou que
                  o governo julgava importante, novas concessões tinham que ser
                  feitas, fosse fornecendo cargos, liberando emendas, ou
                  barganhando apoio em outras matérias. Além disso, sabe-se
                  hoje que esse apoio resultava de um engendrado esquema de
                  corrupção que, entre outros destinos, comprava votos e
                  “fidelidade” de congressistas e estimulava a migração
                  entre partidos. Em
                  julho de 2005 o PSDB, na tentativa de comprovar o pagamento a
                  deputados em troca de votos, divulgou um gráfico que
                  apresenta o cruzamento das datas de saques em dinheiro dos
                  bancos usados no esquema com votações no Congresso de matérias
                  que o governo considerava de seu interesse ou prioritárias. A
                  lei de biossegurança está entre os projetos citados pelos
                  tucanos cujos períodos de votação coincidiram com os saques
                  escusos. Mais recentemente, em outubro, a quebra do sigilo
                  telefônico de Marcos Valério sugeriu uma ligação ente seu
                  esquema com o Banco Rural e a negociação da MP 113 com o então
                  presidente da Câmara dos Deputados João Paulo Cunha (PT/SP). O
                  descaso que o núcleo dirigente do governo demonstrou com as
                  questões ambientais, mostrou também que a crítica ambiental
                  acolhida pelo partido, ao menos para eles, não gozava de
                  reconhecimento estratégico a ponto de ser enfrentada a partir
                  da implementação de políticas públicas alternativas. Para
                  usar um termo recorrente, não passou de bravata, e o
                  desenvolvimento sustentável como proposta transversal de
                  governo pereceu entre as intenções da ministra Marina Silva. Se
                  um dia desvendada, a origem do dinheiro que guiava votações
                  ajudará e muito a esclarecer as opções políticas e táticas
                  do governo e também a dar nome e cara aos atores que se
                  beneficiam das leis aprovadas. O fato de um ex-advogado da
                  Monsanto ter sido levado para a Casa Civil, já pela ministra
                  Dilma Roussef, para redigir o decreto de regulamentação da
                  Lei de Biossegurança também diz muita coisa.  
                  
                   A
                  omissão estratégica do Estado
                  
                    
                  
                   No
                  plano federal o governo foi omisso, não fiscalizando nem
                  controlando os plantios ilegais de soja transgênica, não
                  impedindo a continuada entrada de sementes da Argentina e não
                  rotulando alimentos. Essa ausência do Estado começou,
                  deve-se dizer, no segundo mandato de Fernando Henrique. Do
                  ponto de vista dos que visam a introdução rápida e
                  desregulamentada dos transgênicos, tal omissão oficial ajuda
                  a consolidar a impressão de que a contaminação é uma
                  estratégia bastante eficaz. Primeiro as indústrias da
                  biotecnologia acham uma brecha para contaminar as sementes do
                  principal produto agrícola do país. Feito isso, elas
                  permitem, num primeiro momento, que o mercado ilegal de
                  sementes se expanda e, num segundo momento, pressionam junto
                  com produtores para que os governos reconheçam e legitimem o
                  fato consumado. Além do caso brasileiro, isso aconteceu em vários
                  outros países, como na Índia, na Romênia, no Paraguai, na
                  Argentina, na África do Sul e em países da África
                  Ocidental.
                  
                   Os
                  ruralistas e as indústrias não estiveram sozinhos na
                  empreitada de desregulamentar o uso de transgênicos. Eles
                  contaram com toda a dedicação do líder do governo no
                  Senado, o senador Aloísio Mercadante (PT/SP). Seus discursos
                  repetiam todas as promessas das empresas de biotecnologia, que
                  até agora não foram comprovadas. Dizia o senador que os
                  transgênicos conservam mais o solo, reduzem o consumo de
                  agrotóxicos e até evitam o desmatamento, já que são mais
                  produtivos. Elencados os potenciais dos transgênicos, o
                  senador concluía em seus discursos que “os ambientalistas
                  deveriam ser os primeiros a defender o uso da biotecnologia na
                  agricultura”. Ao
                  baixar três medidas provisórias para a soja transgênica, o
                  governo firmou um estado de anomia, onde a estratégia da
                  contaminação e da introdução ilegal de sementes transgênicas
                  passou a ser uma opção para as indústrias de biotecnologia,
                  que até agora não fizeram valer suas promessas.  
                  
                   Futuros
                  conflitos
                  
                    
                  
                   Com
                  a liberação para plantio comercial da soja e do algodão
                  transgênicos e das demais culturas que podem vir, a Justiça
                  passará a ser um ator cada vez mais requisitado. Isso por três
                  principais motivos: (1) pela não aplicação da lei de
                  rotulagem para alimentos que contenham ou sejam derivados de
                  transgênicos; (2) por processos movidos por agricultores orgânicos
                  ou convencionais que tenham suas lavouras contaminadas por vizinhos que plantam transgênicos;
                  e (3) pela Monsanto ou por outras empresas alegando uso
                  indevido de sua tecnologia e violação de patentes. Para
                  quem dizia que queria com a aprovação de uma nova lei acabar
                  com as disputas judiciais acerca do tema, pode-se dizer que o
                  tiro passou bem longe do alvo.  
                  
                    A
                  opção pelo agronegócio
                  
                    
                  
                   Lula
                  sempre obteve massiva votação entre agricultores familiares
                  e suas organizações e entre trabalhadores rurais sem terra,
                  que viam nele como governante a opção pelo favorecimento do
                  acesso a recursos produtivos, como terra e água, e como forma
                  de se promover o desenvolvimento em bases mais includentes e
                  descentralizadas. Esperava-se de um governo lulista, além da
                  realização de um amplo processo de reforma agrária, o
                  fortalecimento da agricultura familiar, a revitalização dos
                  serviços públicos de extensão rural a partir de um enfoque
                  agroecológico, a criação de linhas de crédito alternativo
                  para a produção agroecológica e de outros mecanismos, como
                  pesquisa e comercialização, que pudessem viabilizar um amplo
                  processo de conversão da agricultura de base familiar à
                  agroecologia. Alguns desses aspectos avançaram nesses quase
                  três anos, mas não de forma a configurar uma política de
                  desenvolvimento rural baseada na agricultura sustentável, na
                  diversificação produtiva, no fortalecimento de mercados
                  locais e na circulação interna de riquezas. Não
                  são raras as avaliações que dizem que o PT chegou ao
                  governo sem um projeto para o País, mas com um projeto de
                  poder que incluía a reeleição de Lula. Para isso, o governo
                  centrou suas forças na busca por alianças que supostamente
                  lhes dariam maior capacidade de governar, ou maior
                  governabilidade, no jargão atual. Assim, incorporou a lógica
                  pragmática e aproximou-se do que há de mais retrógrado na
                  política, dos setores mais fisiológicos, daqueles que
                  independente da orientação político-ideológica do governo,
                  não mudam, permanecem fiéis ao governo. Não ousou inovar na
                  forma de fazer política e deu
                  as mãos ao fisiologismo. A
                  nomeação do ministro da Agricultura foi, no campo que
                  estamos discutindo, a mais emblemática demonstração de que
                  o governo não estava disposto a promover transformações.
                  Roberto Rodrigues foi escolhido por ser o nome de maior
                  destaque e influência no empresariado rural. Dirigente de
                  organizações e associações representativas do agronegócio,
                  Rodrigues representava para Lula uma possibilidade de
                  interlocução com os ruralistas do Congresso para obter deles
                  apoio para a manutenção do poder. Desse ponto de vista,
                  interessou especialmente ao núcleo petista do Planalto o fato
                  de a ligação desses parlamentares ao líder do agronegócio
                  se manter acima de divergências entre governo e oposição, já
                  que a bancada ruralista tem dos dois, mas vota de acordo com
                  as orientações do ministro e deve grande fidelidade a ele. Se
                  faltava ao governo a visão de um ponto onde se almejava
                  chegar, o mesmo não acontecia com o titular da Agricultura.
                  Acontece que seu projeto de promoção e fortalecimento do
                  agronegócio monocultor, exportador e altamente consumidor de
                  recursos naturais representava uma rota de colisão explícita
                  com políticas no campo do desenvolvimento agrário, do meio
                  ambiente, da saúde, da segurança alimentar, da inclusão
                  social e dos direitos humanos. A
                  exportação de commodities agrícolas foi o elemento que
                  pesou para concretizar a política econômica voltada para a
                  geração de superávit primário para o pagamento de juros de
                  dívidas. Isso permitiu a aliança da Agricultura com os
                  demais ministérios empenhados na execução dessa política,
                  como o da Fazenda, o de Desenvolvimento, Indústria e Comércio
                  Exterior e o de Ciência e Tecnologia. Assim ficou configurado
                  o racha ministerial dentro do governo, que promove políticas
                  antagônicas e que sempre que colocadas lado a lado para decisão
                  do governo, pendeu para aquele que apresentava cifras mais
                  expressivas. Apesar
                  de nomear petistas progressistas para as pastas do
                  Desenvolvimento Agrário e do Meio Ambiente, Lula, ao entregar
                  um de seus ministérios a Roberto Rodrigues, fez a opção
                  pelo agronegócio. E embora nunca feito de forma assumida,
                  isso ao mesmo tempo representou a opção pela liberação dos
                  transgênicos. O
                  período de modernização da agricultura ocorrido nas últimas
                  quatro décadas ficou conhecido como Revolução Verde. Com
                  amplo incentivo do Estado, através do direcionamento das políticas
                  de ensino e pesquisa agropecuários, assistência técnica e
                  crédito agrícola, foram amplamente difundidos os pacotes
                  tecnológicos da agricultura convencional baseados no uso de
                  sementes melhoradas, entre elas as híbridas, fertilizantes químicos,
                  agrotóxicos e maquinário. Por ser altamente dependente de
                  insumos externos à propriedade, esse modelo agrícola
                  promoveu uma aproximação crescente da agricultura ao setor
                  industrial. As
                  sementes transgênicas representam a continuidade desse
                  paradigma, promovendo uma vinculação campo-indústria ainda
                  mais forte. Hoje as empresas de insumos são as mesmas das de
                  sementes (e de fármacos). Um grupo de não mais de meia dúzia
                  de multinacionais comprou praticamente todas as empresas
                  nacionais de insumos e controla o setor. Só a Monsanto, por
                  exemplo, controla mais de 90% do mercado de transgênicos no
                  mundo. Não é de se estranhar, portanto, que atualmente de
                  cada 4 hectares cultivados com plantas transgênicas, 3 usam
                  sementes resistentes a herbicidas. A mesma empresa fatura duas
                  vezes, vendendo sementes e vendendo o herbicida. Isso acontece
                  apesar de as empresas prometerem que o uso de sementes transgênicas
                  reduziria o uso de agrotóxicos. Mesmo dez anos depois do início
                  da produção de transgênicos no mundo, a venda de agrotóxicos
                  continua sendo a principal fonte de receita dessas empresas. A
                  apropriação privada de recursos genéticos através do
                  patenteamento de sementes vem para consolidar a dependência
                  dos agricultores em relação à indústria. Com a agricultura
                  comandada pelo setor industrial e com a indústria concentrada
                  e orientada para controlar ainda mais o sistema produtivo com
                  pacotes tecnológicos agora com sementes pateteadas, a opção
                  pelo agronegócio é também a opção pelos transgênicos. 
                    
 
 
                       Gabriel Bianconi Fernandes
                      é engenheiro agrônomo e assessor técnico da AS-PTA
                      (Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura
                      Alternativa) e da Campanha Por Um Brasil Livre de Transgênicos 
 |