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Relatórios

Destacamos, com muita preocupação, a situação do povo Guarani-Kaiowá no estado do Mato Grosso do Sul, cujo registro de presença – e de presença intensa - de praticamente todas as formas de violência perpetradas contra as comunidades indígenas, nos leva a pensar que estão consolidadas as características clássicas de etnocídio, naquele povo indígena e naquele estado da federação.

 

Inventário de uma infâmia – Violência contra os povos indígenas no Brasil

 Paulo Maldos*

 

“Enforcou-se com um pedaço de corda amarrada a um galho de árvore. Após chegar da escola a garota passou toda a tarde da quarta-feira limpando embaixo e ao redor da árvore”. Suicídio de Anselma Romeiro, 12 anos, Guarani-Kaiowá, Amambai, MS.

 

“Após a morte de Lázaro, Adelaide pegou uma caneta e escreveu seu próprio nome no braço do marido morto”. Assassinato de Lázaro Mendonça Aguero, 19 anos por sua esposa, Adelaide Ajala Batista,23 anos, Aldeia Pirajuí, Paranhos,MS.

 

 

Ao tomarmos contato com os dados relativos às diversas formas de violência praticadas contra os povos e comunidades indígenas no Brasil em 2005, somos tomados pela sensação de que a invasão colonial continua, em pleno Século XXI.

Essa sensação torna-se ainda mais perturbadora quando lembramos que tais violências ocorrem quase 20 anos depois da aprovação de uma Constituição (1988) que mudou a orientação da relação do Estado e sociedade brasileiros com relação aos povos indígenas e ocorrem no terceiro ano de um governo federal que prometia aplicar esta nova orientação constitucional na sua plenitude.

 

Sobre o método

 

As informações sobre as quais trabalhamos para elaborar a presente análise foram produzidas por uma variedade de fontes: relatos das próprias vítimas; relatos das comunidades indígenas atingidas; denúncias das organizações indígenas (documentos, manifestações públicas); depoimentos de missionários do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) que atuam nas áreas indígenas; depoimentos de agentes do poder público que atuam nas áreas indígenas; matérias da imprensa local e nacional.

Essas informações chegaram ao Secretariado Nacional do Cimi, enviadas pelos Regionais da entidade, incluídas em planilhas temáticas, cada uma correspondendo a um determinado tipo de violência. Para integrar a sistematização final, no quadro geral consolidado, cada informação teve sua fonte e veracidade checadas pelas equipes de área do Cimi.

A análise que oferecemos a seguir terá como base imediata os temas e descrições destas planilhas, pois acreditamos que esta proximidade com os dados originais e sua diversidade permite uma visualização mais objetiva e contundente das variadas formas de violência a que continuam submetidos os povos indígenas no Brasil, constituindo, assim, como poderão observar, um verdadeiro “Inventário de uma infâmia”.

 

Mortalidade Infantil

 

Foram relatados 34 casos de morte de crianças, de 0 a 12 meses de idade, sendo as causas imediatas, principalmente desnutrição e pneumonia. Fica evidente nos relatos a falta de atendimento médico, de recursos humanos e materiais, de cuidados com as gestantes e com os recém-nascidos, por parte do sistema de saúde. As áreas de maior incidência da mortalidade infantil, nos primeiros 12 meses de vida, foram a região amazônica e o estado do Mato Grosso do Sul.

 

Foram relatados 44 casos de morte de crianças, de 0 a três anos de idade, sempre por desnutrição, sendo 31 casos referentes ao Mato Grosso do Sul.

Foram também relatados 37 casos de morte, de crianças e adultos, por absoluta falta de atendimento médico, sendo 21 crianças, sem idade definida. Daquele total, 31 casos ocorreram na região amazônica.

 

Suicídios

 

Foram relatados 23 casos de suicídio, todos no estado do Mato Grosso do Sul. As idades variam de 12 a 53 anos, sendo mais da metade, 13 casos, suicídios de adolescentes de 12 a 18 anos.

Chama a atenção o fato da totalidade dos casos ter ocorrido em um mesmo povo, Guarani-Kaiowá, e num mesmo estado, no Mato Grosso do Sul. Isto revela a situação de confinamento e de ausência de perspectivas de vida a que vem sendo submetidas as comunidades Guarani-Kaiowá naquele estado, com seus territórios brutalmente invadidos por fazendeiros e com a total paralisia da ação demarcatória pelo governo federal.

Mais graves ainda são as características culturais e de faixa etária com as quais se revestem os casos de suicídio. Neste sentido, são freqüentes tais casos durante a adolescência e tendo como detonantes situações cotidianas de discussão ou pequenos conflitos inter-pessoais ou, ainda, a partir da ocorrência de suicídios de pessoas próximas e familiares.

Uma certa decisão íntima, determinada e nunca demonstrada por nenhum sinal externo, parece fazer parte de um padrão entre tais suicídios, o que aumenta a surpresa, a dor e a sensação de impotência frente a este desafio que se constitui para a comunidade indígena. O contexto geral, no entanto, que envolve a todos os casos, é o da absoluta falta de horizonte para a vida daquelas comunidades indígenas.

 

Assassinatos de Indígenas

 

Foram relatados 33 casos de assassinatos de indígenas. Chama a atenção o fato de, novamente, o estado do Mato Grosso do Sul ser onde ocorreu a ampla maioria desses casos, 23 casos.

Muitos casos estão relatados como de autoria desconhecida, o que reforça a percepção da impunidade e do acobertamento dos assassinos e mandantes. Em alguns casos, o assassinato foi feito por bandos armados por fazendeiros invasores dos territórios indígenas.

É importante destacar o caso do assassinato de uma liderança do povo Truká e de seu filho adolescente, em Pernambuco, por policiais militares vestidos a paisana. Esta liderança tinha um lugar de destaque nas retomadas e na defesa do território da comunidade, inclusive na resistência atual ao projeto de Transposição do Rio São Francisco. As circunstâncias em que ocorreu o duplo assassinato indicam premeditação, planejamento e apoio aos assassinos por parte do poder local.

É importante, também, destacar a ocorrência freqüente de casos de assassinatos de indígenas por outros indígenas, geralmente como fruto de desavenças familiares ou na comunidade, diversas vezes numa circunstância de consumo de bebida alcoólica.

 

Tentativas de Assassinato

 

Foram relatados 22 casos de tentativas de assassinato, sendo que 18 casos somente no estado do Mato Grosso do Sul. Alguns casos envolvem várias vítimas, em grupos de 5 até 20 pessoas que sofreram tentativas de assassinato.

Aqui, repete-se a existência de autoria desconhecida, de bandos de pistoleiros a serviço de fazendeiros invasores de territórios indígenas e de casos onde tanto vítimas como agressores são da mesma comunidade e, não raro, da mesma família. Em termos das circunstâncias nas quais estes últimos casos ocorreram, não raro existe a presença de bebida alcoólica.

É importante destacar que em dois dos casos de tentativas de assassinato de grupos de indígenas, o contexto, sempre no Mato Grosso do Sul, era o da retomada das terras tradicionais pelas comunidades Guarani-Kaiowá e Guarani-Ñandeva, e os agressores, pistoleiros a mando de fazendeiros invasores e policiais militares em ações para a “reintegração de posse” para os fazendeiros.

 

Ameaças de Morte

 

Foram relatados 12 casos de ameaças de morte, sendo 7 casos na região amazônica , 1 no estado da Bahia e 4 casos no estado do Mato Grosso do Sul, sendo este o que mais concentrou casos de ameaça.

Foram recorrentes os casos de ameaças de morte a comunidades indígenas inteiras, a lideranças ou a grupos da comunidade por parte de pistoleiros e fazendeiros invasores de suas terras. Três desses casos ocorreram no estado de Roraima, no contexto dos conflitos em torno da homologação da Área Indígena Raposa Serra do Sol. Outros casos ocorreram com comunidades em luta pela retomada de suas terras tradicionais.

 

Violências Sexuais

Foram relatados 17 casos de violência sexual, sendo 7 casos no estado do Mato Grosso do Sul. É importante ressaltar que 12 casos se referem a vítimas com idades de 8 a 16 anos de idade.

Aqui também notamos a recorrência de agressores indígenas, por vezes parentes das vítimas e de agressores não-indígenas, mas que atuam como prestadores de serviço em instituições do Estado. É importante destacar a agressão sexual sofrida por uma adolescente de 15 anos, no estado do Acre, grávida e com dores de parto e cujo agressor foi o próprio médico que deveria atendê-la. Este médico já tinha antecedentes como agressor, nas mesmas circunstâncias, de mulheres e adolescentes indígenas, em instituições do Estado, e mesmo assim continuava trabalhando nelas normalmente.

Devemos destacar também as agressões sexuais sofridas por crianças e adolescentes dos povos Guarani e Kaingang, da Terra Indígena Rio das Cobras, no estado do Paraná, cortada pela BR-277. Motoristas que trafegam na BR-277 estão induzindo as menores indígenas que vendem artesanato na beira da estrada a se prostituírem.

 

Violências Contra o Patrimônio

 

São inúmeras as denúncias de invasão dos territórios indígenas por fazendeiros, empresas nacionais e estrangeiras, para fim de desmatamento;  extração de madeira, inclusive de espécies em extinção; formação de pastos; atividade garimpeira; expansão do agronegócio do arroz e da soja; despejo de esgoto; expansão de fazendas; apropriação de conhecimentos tradicionais; apropriação de artesanato para comercialização; formação de loteamentos por prefeitura municipal e por particulares; construção de hidrelétricas; construção de hidrovias; pesca de peixes ornamentais para exportação; pesca predatória para comercialização; caça de animais silvestres e para comercialização de peles.

As denúncias são generalizadas, em todas as regiões do país. Nas informações sistematizadas pelo Cimi, pelo menos 70 povos foram atingidos pelas diferentes formas de violência contra o patrimônio da comunidade. O imponderável se dá devido ao fato de muitas denúncias abrangerem toda a realidade de um estado, por exemplo Mato Grosso; por abrangerem um número indeterminado de povos, por exemplo falsas “autorizações para manejo” de florestas expedidas pela Funai; por abrangerem índios isolados, de diferentes povos; por abrangerem mega-projetos, cujas obras mesmo de preparação atingem muitos povos em toda sua extensão: hidrelétricas, hidrovias, Transposição do Rio São Francisco.

Outra forma de violência contra o patrimônio são os despejos judiciais e extra-judiciais.

Houve oito denúncias deste tipo de violência ter ocorrido, todas no Mato Grosso do Sul, envolvendo os povos Guarani-Kaiowá e Terena. Em todos os casos, trata-se de retomadas realizadas pelas comunidades indígenas, de seus territórios invadidos por fazendeiros. Mesmo com a terra sendo reconhecida pelo Ministério da Justiça, o Poder Judiciário toma decisões favoráveis aos fazendeiros invasores; determina a reintegração de posse e a retirada da comunidade, através do uso da força, pela Polícia Federal e Polícia militar. Por vezes, policiais militares realizam operações violentas de expulsão, mesmo sem autorização judicial. Os despejos chegaram a abranger três fazendas de invasores, por um lado, e até 2 mil índios em processo de retomada, por outro.

Além dos temas e casos citados acima, é importante registrar dois tipos de violência ocorridos em 2005:

 

       Disseminação de bebida alcoólica:

Os relatos dão conta de 8 casos, sendo 7 no estado do Mato Grosso do Sul; quase          sempre responsabilizando comerciantes e tendo como conseqüência brigas e violências no interior da comunidade, além de um caso de criança de 4 anos alcoolizada e da morte de um adolescente de 15 anos, por coma alcoólico, ambos no Mato Grosso do Sul;

       Homicídio culposo em acidente de trânsito:

Os relatos dão conta de 11 casos, sendo 7 no estado do Mato Grosso do Sul. Na quase totalidade dos acidentes, as mortes foram de indígenas que caminhavam na beira de estradas próximas às suas aldeias.

 

Conclusão

 

A partir das informações aqui organizadas, por tipo de agressão às comunidades indígenas, durante o ano de 2005, podemos perceber a multiplicidade de formas que a violência continua assumindo para aos povos indígenas no Brasil.

Esta violência tem como agentes:

 

  • Os invasores dos territórios indígenas, geralmente fazendeiros e seus pistoleiros, madeireiros, garimpeiros, comerciantes, caçadores, pescadores, organizados em bandos armados que invadem, assassinam, ferem, ameaçam, estupram e roubam;

  • A Polícia Militar e a Polícia Federal que, a partir de decisões do Poder Judiciário, realizam ações de reintegração de posse, onde não raro são praticadas violências graves contra comunidades inteiras em processos de retomada de territórios, muitas vezes com vítimas fatais;

Servidores públicos e membros da sociedade envolvente, ainda impregnados de uma visão preconceituosa e discriminatória com relação às comunidades indígenas e seus direitos;

·        O próprio Estado brasileiro, ao não garantir aos povos indígenas o direito ao território e à vida, à saúde e ao atendimento médico específico, à defesa frente aos agressores, à defesa do patrimônio material e cultural.

 

Pelas informações coletadas, destacamos com preocupação a incidência de violências praticadas pelos próprios indígenas contra outros indígenas, claramente um processo de internalização da violência circundante e fruto de uma desagregação do modo de vida comunitário devido à  falta de território tradicional e devido à falta de perspectivas mínimas de existência.

Destacamos também, com muita preocupação, a situação do povo Guarani-Kaiowá no estado do Mato Grosso do Sul, cujo registro de presença – e de presença intensa - de praticamente todas as formas de violência perpetradas contra as comunidades indígenas, nos leva a pensar que estão consolidadas as características clássicas de etnocídio, naquele povo indígena e naquele estado da federação.

Por fim, queremos sublinhar que as informações e análises feitas neste breve trabalho devem nos fazer refletir sobre a imensa dívida que o Estado e a sociedade brasileiros possuem com os povos indígenas, sob todos os pontos de vista.

Está claro que ainda há um longo caminho a ser percorrido para que os povos indígenas no Brasil tenham assegurados os seus direitos constitucionais e, principalmente, tenham garantido o seu direito básico à vida e à existência com autonomia e dignidade, de acordo com seus diversos modos de ser.

 

 

* Paulo Maldos é assessor político do Conselho Indigenista Missionário (Cimi)