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Relatórios


Os procedimentos da escravização moderna não devem nada ao acaso: são metodicamente padronizados de Alagoas a Mato Grosso, do Rio de Janeiro ao Pará, da Bahia à Rondônia, do Maranhão e Piauí ao Tocantins e Goiás, a ponto que se pode falar em sistema da escravidão moderna. Na ponta da linha, temos uma população vulnerável, sem acesso à educação, à terra, a oportunidades de trabalho; no seu caminho, vários intermediários, agenciadores ou gatos, transportadores, donos de pensão, corroborando a ilusão de uma promessa mirabolante, passando para frente uma dívida que só começará a ser cobrada lá no mato, na outra ponta da linha, principalmente neste arco do desmatamento onde ocorrem em torno de 80% dos casos desvendados: Maranhão, Tocantins, Pará, Mato Grosso.

 

A face hedionda do modelo de desenvolvimento ora imposto – sobre o trabalho escravo

 Frei Xavier Plassat*

 

Como ensina a secular experiência indígena e camponesa, a terra é muito mais que terra. Passados 500 anos de sua brutal invasão, a terra de trabalho e de fraterna vivência continua reduzida à terra de negócio e de matança.

Não foi por acaso que a questão da escravidão tem sido trazida à luz pelas sucessivas, teimosas e proféticas denúncias da Comissão Pastoral da Terra desde 1972 e pelo grito do bispo Pedro Casaldáliga. Tudo indica, desde sempre, um vínculo estreito e tipicamente brasileiro entre apropriação da terra e aprisionamento do trabalho.

Cento e dezessete anos após sua teórica abolição, a escravidão perdura no Brasil. Esta é uma realidade que não se pode negar. Os mais de 18 mil trabalhadores retirados da servidão pelas equipes do Grupo Móvel, desde sua criação em 1995, não foram resgatados por motivo fútil. Foram, sim, encontrados em situação subumana, submetidos a condições de trabalho, de alojamento, de alimentação, de confinamento que, em muitos casos, eram bem piores que as do gado encontrado no mesmo local. Temos provas disso todo santo dia. Na CPT, recebemos diariamente trabalhadores fugitivos dessas fazendas, trazendo suas denúncias de situações que nos deixam muitas vezes sem voz.

Em 11 de março de 2003, 115 anos após a Lei Áurea, o Estado brasileiro assumiu o compromisso de erradicar a escravidão. Meta presidencial e compromisso que nos engaja a todos, frente à sociedade nacional. Frente à comunidade internacional também: simultaneamente ao lançamento do Plano nacional, o presidente Lula assinou o Termo de Solução Amistosa no caso José Pereira, pelo qual o Brasil assume responsabilidade pelo ocorrido no passado e compromissos de mudanças perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos, da OEA. O lançamento recente - em Brasília - do relatório mundial da OIT “Uma Aliança Global contra o Trabalho Forçado” confirma a gravidade e a importância desta questão para a comunidade internacional. Erradicar depois de tantos anos de acomodação e aberta tolerância é um desafio e tanto, pois sabemos que tirar um escravo do cativeiro não erradica a escravidão. Senão, como explicar que a libertação de tantos escravos nos últimos anos ainda não tenha resultado em nenhum recuo dessa chaga? 

Os procedimentos da escravização moderna não devem nada ao acaso: são metodicamente padronizados de Alagoas a Mato Grosso, do Rio de Janeiro ao Pará, da Bahia à Rondônia, do Maranhão e Piauí ao Tocantins e Goiás, a ponto que se pode falar em sistema da escravidão moderna. Na ponta da linha, temos uma população vulnerável, sem acesso à educação, à terra, a oportunidades de trabalho; no seu caminho, vários intermediários, agenciadores ou gatos, transportadores, donos de pensão, corroborando a ilusão de uma promessa mirabolante, passando para frente uma dívida que só começará a ser cobrada lá no mato, na outra ponta da linha, principalmente neste arco do desmatamento onde ocorrem em torno de 80% dos casos desvendados: Maranhão, Tocantins, Pará, Mato Grosso.

Trabalho escravo não é qualquer situação de trabalho degradante, embora degradar uma pessoa pelo trabalho já seja meio caminho andado na sua escravização. É de bom tom hoje em dia glosar sobre a pretensa falta de conceituação do trabalho escravo[1]. Jogar dúvidas a esse respeito é fazer de conta que não temos leis para apontar com clareza o que vem a ser escravidão. Convenções 29 (de 1930) e 105 (de 1957) da OIT, bem como nosso Art.149-CP, prontamente atualizado em dezembro de 2003, trazem com muita clareza o conceito de trabalho escravo contemporâneo: “Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto. E ainda: quem cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho;  mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.” No trabalho escravo, muito além dos vários ilícitos trabalhistas, é a liberdade e a dignidade humana, direitos humanos fundamentais que são comprometidos.

As situações encontradas são geralmente o produto dos seguintes ingredientes: promessa enganosa + trabalho forçado + condições degradantes + não pagamento de salários + dívida fabricada + ameaças + impedimento de sair. A dívida fabricada, frequentemente aumentada pela pressão ostensiva, senão armada, e o confinamento garantem a sujeição temporária da mão-de-obra até a conclusão da empreita. “O fazendeiro e os gatos fazem a cabeça do escravo. Ele acredita que deve dinheiro no barracão, tem de pagar, pois não é decente fugir. A fuga (que o fazendeiro chama de calote) é moralmente condenável. Os escravos das fazendas brasileiras padecem da síndrome de Lula-Palocci. Eles também acreditam que não há outro jeito senão pagar”[2]. Ônibus de turismo de fachada saem diariamente de Alagoas para Mato Grosso carregando levas de cortadores de cana iludidos; pensões de Açailândia (Maranhão), Marabá ou Redenção (Pará), Araguaína (Tocantins), prosperam no fornecimento de braços contratados para desmatar a Terra do Meio, roçar pastos e juquira no interior do Pará, Tocantins, Maranhão, ou catar raízes para lá de Lucas do Rio Verde ou de Sinop (Mato Grosso) para colher algodão no Baixo Araguaia mato grossense, ou laborar nas carvoarias do Maranhão, Pará e Tocantins, que abastecem nossa siderurgia. Peões de trecho (já sem outra referência a não ser o caminho da fazenda), migrantes temporários do Nordeste, e peões moradores rivalizam pela obtenção dessas empreitas miseráveis.

 

Como explicar a permanência deste moderno tráfico humano?

 

Ainda longe de responder à amplitude da demanda, o indispensável e, não raro, heróico resgate realizado pelos fiscais do Grupo Móvel atende a uma necessidade meramente emergencial. Não trata o problema da escravização. Não ataca o sistema da escravidão moderna. Este sistema de escravidão moderna embasa-se em três pilares: a miséria de milhões de brasileiros, a ganância de milhares de oportunistas sem escrúpulo, a impunidade selada pela elite que se utiliza deste crime. Ele se perpetua pela reprodução da miséria da exclusão da terra e do emprego, pelo império do lucro hoje concedido à nova menina dos olhos com codinome ‘agronegócio’ e pela cumplicidade do legislativo e do judiciário em manter impunes os infratores, vários deles oriundos das suas próprias fileiras. Identificar esses três pilares da escravidão é simultaneamente definir os remédios que poderão romper com este secular ciclo vicioso.

No Brasil, 16,5% das famílias com filhos de 5 a 17 anos têm pelo menos um deles trabalhando. Essa percentagem chega a 27% no Piauí, 25% no Tocantins e Maranhão, três estados entre os maiores fornecedores de mão-de-obra escrava. Noventa por cento dos escravos modernos são analfabetos; 90% vêm do trabalho infantil; 80% não têm certidão de nascimento; No Piauí, 36% dos trabalhadores migrantes sustentam família de mais de oito pessoas, segundo pesquisa feita pela CPT, a qual também informa que 72 % das famílias de migrantes têm renda de até um salário mínimo e 99% de até dois; metade destes trabalhadores migram por absoluta falta de emprego ou de recursos para sustentar a família. Para permanecer pedem uma terra e um trabalho (75%). Ou, como cita o Padre Ricardo Rezende, autor de uma pesquisa sobre o tema recém publicada[3]: “Ao questionar um jovem piauiense reincidente notório do trabalho escravo, se, tendo a oportunidade de ganhar um salário mínimo, o jovem se manteria em seu município, ouviu a seguinte resposta:  - Quanto é um salário mínimo? - 160 reais (o valor na época) - Por trinta reais eu já ficava.

No estado do Tocantins, que ganhou em 2004 o segundo lugar no ranking brasileiro das libertações realizadas, vejamos por exemplo esses 60 trabalhadores libertados em abril de 2004 da fazenda Caracol, estabelecida em terra da União, no município de Cachoeirinha: eram sem-terra acampados em beira de estrada, nos acampamentos União e Olho d´Água, há anos esperando o hipotético cumprimento da promessa de reforma agrária. Vejamos ainda Rael e Gelquison, menores de idade, e seus 27 companheiros, libertados da escravidão, faltando quatro dias para celebrar o último Natal. Um gato – diabolicamente batizado Natalino - os havia aliciado em Campos Lindos, Tocantins, uma dessas novas capitais da soja, para catar raiz em nova lavoura de grãos. Ou, ainda, no Mato Grosso, o trabalhador Cícero, que, junto com 96 companheiros, saiu de Barra de Santo Antônio, Alagoas, acreditando na promessa mirífica de poder ganhar até R$ 200 por dia no corte da cana em Lambari d´Oeste, Mato Grosso, e acabou, após dois meses de trabalho penoso, com miseráveis R$ 596, menos a dívida da passagem de R$ 200.

Como não ver o rastro da ganância no desenfreado e predador desmatamento produzido pelo avanço descontrolado do agronegócio, incorporando a cada mês milhares de quilômetros quadrados de cerrados e de florestas, e auto-declarado isento de qualquer suspeita por conta dos eminentes serviços prestados à balança comercial do país?

Com roupagem modernizada, é o velho conhecido latifúndio ditando suas regras ao resto da sociedade, definindo qual deve ser o modelo de desenvolvimento agrícola do país (monocultura de commodities para exportação, erradicando a agricultura camponesa que mesmo assim teima em abastecer mais de 60% da mesa do brasileiro), e impondo qual deve ser o patamar da dignidade laboral.

No Mato Grosso e Pará, que, juntos, respondem por 75% do desmatamento brasileiro, os mesmos municípios que lideram o ranking do desmatamento são campeões da escravização: São Félix do Xingu, Tapurah, Novo Repartimento, Marabá, Brasnorte, Novo Ubiratã, Querência, Gaúcha do Norte, Aripuanã, Santana do Araguaia. Na guerra internacional pela ocupação do mercado mundial da carne, da soja, do algodão, do açucar, do aço, um certo Brasil continua guerreando com sua secular arma secreta: a escravização de milhares de seus cidadãos, como forma abjeta de baratear seus custos, enquanto outro Brasil – o mesmo, quiçá – tenta derrubar na Organização Mundial do Comércio (OMC) os subsídios, legais ou ilegais, praticados pelos concorrentes europeus ou americanos.

Falar abertamente dessa perversão do nosso negócio tornou-se arriscado: incomoda demais a classe auto-proclamada produtiva e tem provocado, em escala crescente, as ladainhas negacionistas emitidas por complacentes empresários e políticos, ou políticos-empresários, cujos negócios essa revelação perturba maximamente. Não todos, porém. Destacam-se algumas iniciativas inovadoras, tais como a das 12 maiores empresas siderúrgicas do país assinando compromisso de erradicação do trabalho escravo na cadeia produtiva do carvão vegetal (agosto 2004), ou das principais redes atacadistas e algumas grandes indústrias do Brasil, e a própria Fiesp, que, em maio de 2005, assinaram pacto nacional de combate ao trabalho escravo com compromisso formal de romper com fornecedores envolvidos nessa prática.

Na medida em que vai se desvendando a cadeia produtiva do trabalho escravo no Brasil, vêm se tornando possíveis iniciativas cidadãs por pressão do mercado consumidor, que exige respeito a princípios incontornáveis. Sim, precisamos saber e informar à sociedade: quem compra a produção de carne desses escravocratas (mais de 70% dos casos), para quem eles vendem a soja, o algodão, o açúcar com gosto de sangue (20% das ocorrências), a quem se destina a madeira clandestinamente extraída (5% das ocorrências). Melhor seria ainda se as organizações profissionais envolvidas, sem aguardar prováveis ameaças de retalhações da comunidade nacional e internacional, resolvesssem espontaneamente assumir o desafio de limpar suas fileiras de nomes que as envergonham tanto quanto a nós.

Por ora estamos ainda longe dessa expectativa e não são poucos os negacionistas modernos. 

Segundo João de Almeida Sampaio Filho, presidente da Sociedade Rural Brasileira:

"Essas acusações (de ONGs ideologicamente atrasadas, financiadas por recursos dos países ricos) se intensificam justamente num momento em que o Brasil, impulsionado pelo agronegócio, aumenta sua participação no comércio mundial. É preciso que se dê um basta às denúncias equivocadas de trabalho escravo no campo".[4]

Mesmo discurso do presidente da Confederação de Agricultura e Pecuária do Brasil - CNA, Antônio Ernesto de Salvo, alinhado com o ex-ministro da Agricultura (no Governo FHC), Pratini de Moraes. “Ninguém queima floresta para botar boi, não acredite nisso. Uma forma de protecionismo estrangeiro das organizações estrangeiras é dizer que tem trabalho escravo aqui”. Para Salvo, a acusação de trabalho escravo, "além de mentirosa, degrada nossa imagem no exterior".

Blairo Maggi, maior produtor individual de soja no mundo e governador do Mato Grosso, ao lançar, ano passado, em Cuiabá, a campanha estadual "Cidadania Sim, Trabalho Escravo Não", afirmou: "Não conheço o trabalho escravo em Mato Grosso, mas já vi trabalhadores em situação degradante”.

Deve-se lamentar que palavras tão obviamente parciais possam ter recebido reforço de políticos, inclusive na cúpula do Congresso Nacional, bem como do Governo Federal. Severino Cavalcanti (PP/PE), então Segundo-Secretário da Câmara dos Deputados e hoje ex-presidente da mesma, afirmou certa vez: “Não vamos resolver os problemas do campo e do desemprego ameaçando produtores e fazendeiros com o confisco de terras no caso das muitas e controversas versões de ‘trabalho escravo”. Brasil não é primeiro mundo para exigir privadas e outros privilégios para seus boias-frias[5]. Coerente com essa posição, chegou – como presidente da Câmara - a pressionar grandes distribuidores de combustível que haviam descartado de seus fornecedores a Destilaria Gameleira (de Confresa-MT, flagrada várias vezes de trabalho escravo e por isso incluída na lista suja) para que desistissem do boicote anti-escravista.

O vice-presidente José Alencar, perante o 6º Congresso de Agronegócio da Sociedade Nacional da Agricultura, afirmou, em 26 de agosto de 2004: "Não posso dizer que haja trabalho escravo. Há trabalho degradante. Escravo é quem não tem liberdade e tem dono. É preciso não haver condenação contra o setor agrícola moderno sem apuração".

Minimizar o problema ou dar-lhe traços culturais que o naturalizem é outro viés usado pelos negacionistas. Dia 14 de junho de 2004, ao defender no Senado a memória de um amigo fazendeiro do Tocantins, “cidadão honesto e cumpridor da lei, levado ao desvario de tirar a própria vida” pela implacabilidade dos fiscais, o senador João Ribeiro reduziu o problema encontrado pelos fiscais na fazenda do colega (onde nove escravos foram resgatados) simplesmente ao fato que tratava seus peões “à moda antiga”, e fez emocionante discurso[6].

Neste clima, não é de estranhar os fraquíssimos avanços na solução do terceiro e decisivo pilar da escravidão moderna: a impunidade. Bastaria para ilustrar o trágico disfuncionamento do poder judiciário brasileiro citar essa confissão de Ela Wiecko, subprocuradora-geral da República[7]: “Sabemos de apenas duas condenações nos últimos dez anos. Se houver alguma outra, este número não passa de cinco.Uma rápida avaliação do déficit repressivo pode ser dada ao considerar a quantidade de sentenças punitivas prolatadas em face do número de pessoas potencialmente sujeitas a condenação penal por crime de trabalho escravo. Segundo estimativa da CPT, no período de 1996 a 2004, somente no sul e sudeste do Pará, foram realizados mais de 200 flagrantes de escravidão pelo Grupo Móvel, envolvendo mais de 800 infratores, entre gato, fazendeiro, pistoleiro, dono de pensão, transportador. Destes infratores, menos de 80 chegaram a ser denunciados e menos de 30 a serem sentenciados, sendo só 5 deles punidos, entre eles 2 com mera pena alternativa (obrigação de prestar serviços à comunidade).

         Nos últimos três anos, contabilizamos alguns avanços. Em duas direções: na direção da sanção econômica, com a instituição do cadastro dos empregadores escravistas conhecido como Lista Suja dos empregadores flagrados pelo Grupo Móvel utilizando mão-de-obra escrava. Os empregadores nela relacionados estão sendo impedidos de obter novos contratos com os Fundos Constitucionais de Financiamento; sua situação fundiária está sendo investigada e suas cadeias produtivas, rastreadas. No entanto, a partir da publicação da terceira lista, em dezembro passado, 28 empregadores já (até 30 de setembro de 2005) conseguiram liminar da Justiça[8] suspendendo a inclusão de seu nome, tornando problemática a eficácia deste instrumento, e apontando para a oportunidade de um aperfeiçoamento de sua definição legal. Outra iniciativa importante foi, em outubro de 2004, pela primeira vez, a invocação, pelo INCRA, para fins de desapropriação da terra, do descumprimento da função social ambiental e da função social trabalhista da propriedade rural (no caso emblemático da Fazenda Cabaceiras, em Marabá, caso de reincidência múltipla). A medida certa, no entanto, seria obviamente a decisão de confisco da terra – ou expropriação –  prevista pela PEC 438, cuja interminável tramitação no Congresso, nestes 10 anos é a triste ilustração da teimosia de nossa classe dirigente na manutenção do status-quo.

Em segundo lugar, houve avanço na direção de uma ágil atuação do Ministério Público do Trabalho e da Justiça do Trabalho, levando a posturas enérgicas durante a fiscalização e depois de sua conclusão: com a criação de varas itinerantes, o Juiz pode em tempo tomar medidas que dobram o infrator recalcitrante (bloqueio de contas, penhora de bens, quebra de sigilo bancário) ou lhe impõem sanções pecuniárias que, aos poucos, se tornam mais dissuasivas - condenação ao pagamento de indenização por danos morais coletivos de valor substancial: R$ 530 mil no caso do deputado Inocêncio Oliveira, 760 mil no do senador João Ribeiro, 1.35 milhão no da empresa Jorge Mutran-Fazenda Cabaceiras; e, por último, 3 milhões no da Lima Araújo Ltda, proprietária das Fazendas Estrela de Alagoas e Estrela de Maceió[9].

Resta que no plano criminal praticamente ninguém ainda foi para cadeia por crime de trabalho escravo. A indeterminação persistente da competência para julgar – se da Justiça federal ou da Justiça comum, questão a ser dirimida ou pela suprema Corte ou pela Lei – constitui um chão propício para a impunidade. O alongamento da discussão da competência interessa a muitas pessoas, pois através dela empurram-se os processos. Quando se chega ao fim, então, um juiz, estadual ou federal, aplica a prescrição, como acaba de se verificar no caso emblemático do fazendeiro maranhense Miguel Rezende. Em 1996 foram fiscalizadas pelo Grupo Móvel do Ministério do Trabalho e Emprego duas de suas fazendas - fazenda Rezende, às margens do rio Pindaré, localizada no município de Senador La Rocque (Maranhão) e fazenda Zonga, localizada, fato agravante, dentro da Reserva Biológica do Gurupi, em Bom Jardim (Maranhão). No total, os auditores do trabalho libertaram 52 pessoas que se encontravam em condição de escravidão. Novamente, em outubro de 1997, as mesmas fazendas passaram por vistoria do Grupo móvel, tendo sido libertados mais 32 trabalhadores. Escravos ainda seriam libertados de fazendas de Rezende em 2001 e 2003, a ponto desse proprietário rural figurar três vezes na “lista suja”. Hoje, com mais de 70 anos, o fazendeiro se beneficiou da prescrição, pronunciada pelo Juiz de João Lisboa (Maranhão), com base na legislação que estabelece que crimes com pena máxima de até oito anos prescrevem em 12 anos e que, para os maiores de 70 anos, esse prazo cai pela metade. O tempo transcorrido entre a fiscalização que deu início ao processo até a denúncia na Justiça Estadual foi de 7 anos e 5 meses. Durante este tempo o processo correu na Justiça federal até o Superior Tribunal de Justiça decidir, em 21 de outubro de 2004, anular todos os atos decisórios da Justiça Federal e declarar competente a Justiça Estadual do Maranhão.

 

Além da inclusão na categoria dos crimes hediondos, que acerretaria a imprescriptibilidade, faz-se urgente a revisão das penas incorridas pelos infratores, hoje limitadas ao teto de oito anos de prisão: além de facultar uma pronta prescrição, isso possibilita, na maioria dos casos, a conversão branda da pena.  É longa a lista dos impunes do trabalho escravo; são destaques os nomes de Jairo Andrade, no Pará (cuja meticulosa truculência, incluindo homicídios, cemitérios clandestinos, escravização, é relatada detalhadamente no livro de Binka Le Breton “Vidas Roubadas[10], e do seu irmão Gilberto Andrade, na fazenda Carutapera, no Maranhão, que, pela primeira vez, num histórico tumultuado, teve prisão preventiva efetivada em 22 de junho de 2005[11]; também são lembradas as pressões exercidas sobre os fiscais pelo ministro de tutela e a decisão de arquivamento tomada pelo Procurador Geral da República anterior, em benefício do então deputado Inocêncio Oliveira, a despeito do cristalino relatório da fiscalização. O Habeas Corpus concedido recentemente pela suprema Corte ao suposto mandante do crime de Unaí[12] aponta para uma sinistra continuidade.

 

Não estranha encontrar entre os infratores uma taxa de reincidência exorbitante, tendo como campeões, no Pará: Jairo Andrade[13], o Grupo Quagliato – maior pecurarista brasileiro[14], Antônio Barbosa, Romeiro Albuquerque, Lima Araújo Pecuária. Afinal de contas, se a escolha é entre lucrar absolutamente (escapando de qualquer fiscalização) e lucrar ‘razoavelmente’ (pagando tão somente as verbas sonegadas aos trabalhadores, sob a pressão da fiscalização, sem mais ônus), por que parar de escravizar? Não estranha também assistir à multiplicação das ameaças dirigidas aos que denunciam tais práticas: trabalhadores fugitivos, procuradores, juízes e agentes do movimento social ou das pastorais[15]. Não estranha um dos mandantes da morte da irmã Dorothy Stang – Vitalmiro Bastos de Moura - ter sido flagrado poucos meses antes deste crime com 20 trabalhadores escravizados nas ‘suas’ terras griladas de Anapú, Pará (fiscalização do Grupo Móvel na fazenda Rio Verde, em 27 de junho de 2004).

 

Esta é a triste realidade em que convivemos e à qual uma determinação política enérgica teria condição de remediar. Não apostamos, porém, somente em medidas repressivas. Obviamente indispensáveis, essas medidas – a PEC do confisco da terra, a revisão das penalidades criminais, a legislação específica sobre a lista suja, a aprovação de verbas condizentes com a intensificação da fiscalização, as diárias de seus destemidos agentes, a interiorização da Justiça e do Ministério Público, entre outras – ainda estarão longe de resolver um problema que tem seu fundamento no desequilíbrio estrutural gerado pelo modelo de desenvolvimento vigente. Não por acaso, se no mesmo arco do desmatamento e nas mesmas áreas privilegiadas do agronegócio brasileiro, é que se encontram a maior concentração de violência contra a população rural e a maior incidência de trabalho escravo, como mostraram os números reunidos na 20ª edição do Relatório anual dos Conflitos no Campo, lançado em 2005 pela Comissão Pastoral da Terra[16].

Lutar pela erradicação do trabalho escravo é para nós da CPT, indissoluvelmente, lutar pelo advento de uma verdadeira reforma agrária, espaço propício para a afirmação de um outro modelo de desenvolvimento para o campo brasileiro, no respeito dos direitos das pessoas, da terra e da água. Ali está a real política de prevenção que tanto faz falta ainda. Na campanha sistemática que, depois de tantos anos de combate quase solitário, a CPT conduz desde 1997, conclamamos toda a sociedade a “abrir o olho para ninguém virar escravo”. O chamado da Campanha dirige-se em primeiro lugar aos/às trabalhadores/as, com quem desenvolvemos ações visando potencializar a auto-organização e despertar a consciência e iniciativa, em busca de alternativas duradouras. Articulam-se neste combate umas quinze equipes da CPT dos estados do Pará, Maranhão, Tocantins, Mato Grosso, Piauí, Bahia, Rio de Janeiro e Alagoas, promovendo oficinas, seminários, mobilizações, cobranças, organização em núcleos, sindicatos e grupos assumindo iniciativas de resistência, desde a denúncia até a construção de alternativas. Nosso chamado se volta também para os governos federal e estaduais, e para o conjunto da sociedade nacional e internacional. Já surgiram várias iniciativas positivas tais como Fóruns estaduais de combate ao trabalho escravo (PI, MA, MT), Comitê Popular de Solidariedade (RJ), Comissão Estadual de Combate ao Trabalho Escravo (BA,TO, PA), ampliando para novos segmentos da sociedade a luta pela erradicação desta persistente vergonha. À sociedade, aos dirigentes, aos militantes de um outro mundo possível, aos lutadores do povo, a todos aqueles que têm parcela de responsabilidade na transformação desta sociedade, juntos, lançamos este desafio: abramos o olho para ningúem mais ficar escravo neste país.

 

Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara![17]

 

*Frei Xavier Plassat é da coordenação da Campanha Contra o Trabalho Escravo da Comissão Pastoral da Terra (CPT)

 


[1] De acordo com o deputado federal Asdrubal Bentes, integrante da Comissão da PEC 438-A, o que vem a ser identificado como trabalho escravo dependeria exclusivamente da decisão de burocratas que não moram na região e portanto não conhecem a realidade do Pará ou do Nordeste do país: “O técnico vem da capital, sem conhecer as peculariedades da região e, subjetivamente decide que ali ou acolá está se praticando trabalho escravo, às vezes porque falta um sanitário de alvenaria ou energia elêtrica. Nos assentamentos também os pobres trabalhadores vivem jogados, sem sanitários, sem higiene, nos acampamentos, ficam cobertos por lonas. E isso é o governo que está praticando. Então vamos ter de usar o mesmo peso e a mesma medida”. (in Jornal Opinião, 9-10/03/04).

[2] citando Elio Gaspari, O Globo, 11/07/2004.

 

[3] "Pisando fora da própria sombra - A escravidão por dívida no Brasil contemporâneo", Ricardo Rezende Figueira (com fotografias de João Roberto Ripper), 2004.

[4] Estado de São Paulo, 8 de dezembro de 2004.

[5] Discurso pronunciado em 2 de março de 2004.

[6] ... advogando sutilmente em causa própria já que na sua propriedade, em Piçarra-PA, foram libertados 35 escravos em janeiro de 2004, o que resultou em denúncia criminal pelo Procurador Geral da República e condenação pela Justiça do Trabalho a pagar indenização por danos morais coletivos.

[7] O Globo, 10/01/05.

[8] sendo oito pela Justiça do Trabalho e vinte pela Justiça Federal. Treze destas foram do Juiz federal substituto de Marabá, Francisco de Assis Garces Castro Junior, cuja postura sistemática, nessa matéira como em outras (despejos de sem-terra, caso Anapú, caso Branquinho) tem suscitado, no mínimo, perplexidade.

[9] Pena suspensa provisoria e parcialmente por decisão liminar do TRT do Pará (07/06/2005), no aguardo do julgamento do recurso impetrado pelo Grupo Lima Araújo.

[10] Loyola editora, 2002.

[11] Policiais Federais prenderam na última quarta-feira na cidade de Paragominas (Pará) o pecuarista maranhense Gilberto Andrade. Ele foi detido em cumprimento a um mandado de prisão preventiva, expedido pelo juiz da 1ª Vara Criminal Federal, Ney de Barros Belo Filho, acusado de manter trabalhadores em regime análogo a escravidão em uma de suas fazendas, a Boa-Fé Carú, situada no município de Carutapera (576 km de São Luís). No local, fiscais da Delegacia Regional do Trabalho (DRT-MA) encontraram, em novembro do ano passado, 18 trabalhadores “escravos”. Um dos trabalhadores era uma adolescente de apenas 16 anos. “Estes trabalhadores estavam numa situação degradante. Não tinham acesso a água potável, medicamentos e também não dispunham de equipamento individual de segurança. Além disso, não estavam recebendo salários”, relembrou o delegado regional do Trabalho, Ubirajara do Pindaré. O caso foi denunciado pela DRT-MA ao Ministério Público Federal (MPF) que representou judicialmente contra o pecuarista. Além de ter sido preso, Gilberto Andrade teve a sua propriedade seqüestrada por determinação da Justiça Federal. A fazenda ficará hipotecada até que o processo seja julgado. A hipoteca foi uma forma de garantir o eventual pagamento de condenações por danos morais e respectivas indenizações aos trabalhadores. Esta foi a primeira vez no Maranhão que um fazendeiro foi preso e teve a propriedade hipotecada devido a prática de trabalho escravo. (O Imparcial, 24.06.05).

[12] O fazendeiro Norberto Mânica, acusado de ser um dos mandantes dos assassinatos de três fiscais e um motorista do Ministério do Trabalho em Unaí, Minas Gerais, recebeu no dia 31 de agosto, do Supremo Tribunal Federal (STF) o habeas corpus, que permite sua liberdade enquanto o caso é julgado. O crime aconteceu em janeiro de 2004 quando as vítimas vistoriavam e fiscalizavam fazendas da região suspeitas de utilização de trabalho escravo.

[13] Cujos filhos já assumem sem medo a herança: Marco Túlio Andrade Barboza, da direção da CNA e presidente da Associação brasileira de criadores de zebú (sua fazenda de Ananás-TO, a Bonanza, é periodicamente denunciada; na Sertaneja, que também é dele, no mesmo município, o Grupo Móvel libertou 32 escravos em maio de 2005) e Marco Aurélio Andrade Barbosa (na sua fazenda de Axixá, TO, os fiscais resgataram 40 escravos em abril de 2005).

[14] segundo informação da revista Exame, 15/01/2005.

[15] Três de nossos agentes – bem como um procurador da República e um trabalhador-informante - vivem há mais de dois anos sob ameaças oriundas de denúncias gravíssimas visando um fazendeiro conhecido como Branquinho (Aldimir Lima Nunes), contra quem pesam acusações de aliciamento, grilagem, homicídio, trabalho escravo, e que, com pedido de Habeas Corpus negado pelo STF em 14.09.05, permanece foragido da Justiça, após uma primeira prisão seguida de fuga, recaptura, relaxamento da ordem de prisão e revigoramento da mesma, sem efeito até hoje (cf Comunicado da CPT Nacional de 15.09.05). Outros agentes e trabalhadores vivem sob ameaças em MT, PA, PB, PE, etc (cf coletiva de imprensa da CPT na CNBB e audiência a esse respeito com o Ministro da Justiça, no dia 19/04/05).

[16] Conflitos no Campo Brasil 2004, CPT Nacional, Goiânia, abril 2005.

[17] Livro dos Conselhos, in: José Saramago, Ensaio sobre a cegueira.