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Relatórios


A inclusão das pessoas em situação de rua depende, em grande parte, de uma transformação individual, mas também de uma mudança de atitude da sociedade, da mídia e dos governos.

 

A rua como palco de transformações

Marcio Seidenberg*

 Por parte dos governos, é cada vez mais alarmante a tentativa de esconder a população em situação de rua para, talvez, dar a falsa impressão de que o problema não existe. No final de setembro de 2005, a prefeitura de São Paulo instalou, no túnel que dá acesso à avenida Paulista, uma rampa de concreto de piso áspero, incômodo para quem tenta dormir. A obra, chamada de “rampa antimendigo”, teria sido construída para evitar que assaltantes se misturassem aos cerca de 30 moradores do local (famílias inclusive), e continuassem praticando assaltos. O assunto teve repercussão, em parte por conta da visibilidade da avenida Paulista, mas também pela polarização entre os que defendem a rampa e os que a criticam, num embate entre a “arquitetura da exclusão” e a “revitalização do centro”, num duelo entre a limpeza social e a manutenção do espaço público. Entretanto, no debate do polêmico amontoado de argamassa instalado no fim do túnel, há questões urgentes e de ordem prática a serem discutidas.

 A rampa é uma atitude isolada de um projeto que não leva em consideração para onde vão aqueles que habitavam o local. É, portanto, uma porta a mais que se fecha na cidade para aqueles que não têm para onde ir. A ordem parece ser retirar, impedir que pessoas fiquem na rua. E levá-las para onde? Estão sendo construídos melhores abrigos? Afinal, os usuários da maioria desses equipamentos comparam os albergues à cadeia. É banho frio no inverno, desrespeito, uma prisão. É pior do que a própria rua. Há investimentos em moradias provisórias, programas de locação social e bolsa aluguel? Há prioridade na criação de projetos habitacionais definitivos? Em vez de construir rampas, por que não construir condições reais de vida digna?

O problema é histórico. As medidas do Estado voltadas a essa população, desde o início da República até hoje, não mudaram muito. Da derrubada dos cortiços cariocas no início do século XX à operação atual das prefeituras do Rio de Janeiro e São Paulo de remoção, o que se observa é um processo cíclico que visa à limpeza das cidades e ao confinamento das pessoas em situação de rua em albergues e abrigos, políticas que buscam preservar cartões-postais tingidos apenas pela beleza ou pela imponência dos grandes prédios, não pela exclusão.

 Fenômeno mundial

Uma pesquisa da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe) realizada em outubro de 2003 constatou que na cidade de São Paulo há 10.394 cidadãos adultos em situação de rua, número 20% maior em relação a 2000, quando o censo encontrou 8.706 pessoas – o aumento é bastante superior ao crescimento demográfico da metrópole, estimado em 2% ao ano. Quem está nas ruas é um segmento tão diversificado, tão heterogêneo que não cabe em estereótipos. Reúne dos catadores de papel e materiais recicláveis aos desempregados, viciados em substâncias químicas, vítimas de violência doméstica ou até por quem tem serviço, mas não tem dinheiro para pagar condução diária para casa.

A situação de rua – que compreende aqueles que vivem sob as marquises, viadutos e nas avenidas e os que estão em albergues mantidos pelo governo e por instituições filantrópicas – ao contrário do que se imagina, não afeta apenas as nações pobres ou subdesenvolvidas. É um fenômeno mundial. “Ela não ocorre no vazio. Não se pode isolá-la dos contextos sociais, culturais, políticos e econômicos de cada país. Ela pode acontecer a qualquer um de nós”, afirma Kofi Annan, secretário-geral da ONU.

Algumas iniciativas desvinculadas dos governos vêm contribuindo para tratar dessa questão social extremamente complexa. As revistas de rua, por exemplo, que surgiram no decorrer dos anos 1990, configuram-se hoje como uma alternativa de trabalho, geração de renda e inclusão para quem não tem moradia. Elas são, potencialmente, um instrumento de transformação.

As publicações de rua já são mais de 50, espalhadas por 30 países. Tudo começou em 1989, através do jornal nova-iorquino Street News, vendido exclusivamente pela população adulta em situação de rua. Inspirado nele, foi lançada em 1991 a revista The Big Issue, que circula até hoje em Londres. E, em 1994, com o objetivo de integrar e apoiar logisticamente esses projetos mundo afora, surgiu a International Network of Street Papers (INSP). No Brasil, duas ONGs pertencem à Rede Internacional de Publicações de Rua: a Organização Civil de Ação Social, por meio da revista Ocas’’, vendida no Rio de Janeiro e São Paulo, e a Agência Livre para Infância, Cidadania e Educação, através do jornal Boca de Rua, de Porto Alegre.

 Saindo das ruas

Quem chega à Ocas preenche uma ficha e recebe 10 revistas para começar a trabalhar. A partir de então, passa a comprá-las por R$ 1 para oferecer aos leitores, exclusivamente nas ruas, por R$ 3. A diferença é o lucro, sem intermediários, do vendedor. A partir da interação com os leitores, os integrantes do projeto (re)estabelecem contatos, (re)criam vínculos. A Ocas foi convidada a participar, por duas vezes, da Copa do Mundo de Futebol de Rua, e teve a oportunidade de levar seu time de vencedores à Escócia e à Suécia. Semanalmente, o grupo de São Paulo se reúne na sede da organização para participar de atividade de psicanálise, por meio de técnicas de psicodrama. Aos sábados, acontece a oficina de criação, que tem por objetivo elaborar conteúdo para uma das seções fixas da revista, o Cabeça Sem Teto. Entrevistas, artigos, reportagens e imagens são produzidos coletivamente. Quando os participantes expressam, através de um veículo de comunicação, seus pensamentos e questões, estão contribuindo para a conscientização da sociedade. Além disso, a Ocas’’ deixa de ser apenas um instrumento de trabalho para se tornar um espaço que dá voz a eles.

Um dos grandes desafios, senão o maior, no contato com a população em situação de rua é criar condições para a transformação pessoal – necessária para haver transformação social. Sair dessa condição é um caminho de avanços e retrocessos, sem fórmulas preconcebidas e prazos predefinidos. Cada um precisa reunir forças para reconstruir aquilo que se quebrou no caminho. E temos que respeitar o direito de gente que não quer sair da rua. Tudo principia na própria pessoa, como diria Gonzaguinha, na famosa canção Redescobrir. “Cada um tem seu tempo, seu nível de violência, de abandono e seus planos para a vida. Eu até gostaria de tirá-los da rua, gostaria que fôssemos uma passagem para que todos pudessem ir para uma etapa melhor. Mas não é esse o nosso objetivo, e sim que eles tenham voz e possam ser livres. E queremos reforçar a questão da cidadania. Cidadãos na rua ou fora dela”, explica Clarinha Glock, do jornal Boca de Rua.

 Transformações para a rua e para a sociedade

Apesar da importância dos projetos que oferecerem alternativas à população em situação de rua, não podemos circunscrever todo o atendimento a esse segmento da sociedade a algumas iniciativas isoladas de movimentos sociais ou até mesmo dos governos. Por isso, é necessário insistir na implementação de políticas públicas, porque elas têm que levar em conta os direitos assegurados pela Constituição a todos os cidadãos e cidadãs, como moradia, saúde e educação. “O Estado é o regulador das relações sociais e as políticas públicas por ele implementadas deveriam emergir com a participação de todos(as). O problema é a falta de representatividade da sociedade civil nos fóruns sociais, o que impede uma pressão ordenada e uma visão coletiva fundamentada no diálogo. Cabe a nós pressionarmos o governo pela criação dessas políticas. Precisamos exercer um papel fiscalizador e propositivo”, explica Tatiana Dahmer Pereria, da Federação de Órgãos para a Assistência Social e Educacional (Fase), durante o II Seminário sobre População Adulta em Situação de Rua. Além das organizações que produzem a revista Ocas’’ e o jornal Boca de Rua, há também espaços de discussão sobre o tema abertos ao público, como o Fórum de Debates, em São Paulo, a Comissão Permanente de Monitoramento da Política de Assistência à População em Situação de Rua, no Rio de Janeiro, e entidades como a Rede Rua, Pastoral do Povo da Rua e Organização de Auxílio Fraterno (OAF).

Não se referir a essa população como moradores de rua ou mendigos é outra atitude que colabora para quebrar estereótipos. Nós tentamos conceituá-la como pessoa em situação de rua, pensando na idéia de que a rua é uma condição, que pode ser efêmera ou até permanente, mas que não é intrínseca, inerente aos indivíduos que nela estão. Quando é utilizado o termo de morador de rua, tem-se a impressão de que a condição de habitante está tão arraigada, que não há possibilidade de transformação. E aí reside o pilar para a formulação do preconceito, que acaba legitimando, infelizmente, as operações de remoção das pessoas em situação de rua, protagonizadas pelos governos. Confinar essa população em albergues parece menos agressivo do que encontrá-la pelas ruas da cidade, embaixo do viaduto, na calçada de nossas casas. É mais cômodo também. Mas, em vez de permitir que o desconforto seja escondido, a sociedade precisa, num esforço multidisciplinar, finalmente, encará-lo, para, junto com a própria população de rua, apontar saídas e alternativas.

  

* Marcio Seidenberg é jornalista e colaborador da Organização Civil de Ação Social (OCAS)