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Relatórios
 

Não se nega que o governo Lula herdou uma dinâmica destrutiva de ocupação da Amazônia brasileira, uma burocracia em parte corrompida, uma política macroeconômica com a qual não podia romper de imediato. Mas ele tratou de fazer frutificar a herança. O discurso e as práticas do crescimento associados a uma política macroeconômica de estabilidade são duplamente ruinosos para a Amazônia.

 

Política ambiental do governo Lula para a Amazônia*

 Jean-Pierre Leroy**

 

Entendendo por política pública a conjugação de um pacto passado entre setores sociais que se entendem para realizar algo com a vontade e a decisão de um governo de implementar o que propõe o pacto e, enfim, com a reunião dos recursos humanos e materiais necessários para viabilizar concretamente essa decisão, não há política ambiental na Amazônia. Só se escuta uma cacofonia de discursos e só se esboçam ações cujo futuro é incerto, quando não morrem antes de dar fruto.

A distância entre os setores econômicos e políticos dominantes, de um lado, e as populações locais, rurais e florestais, suas organizações representativas e as ONGs que as assessoram, do outro, é maior do que nunca. No entanto, vale notar que algumas entidades, em particular algumas que mantêm vinculação institucional com matrizes ou entidades parceiras situadas em países industrializados, estão estabelecendo contatos com setores empresariais. No plano social, nada indica que esses setores estejam dispostos a assegurar um espaço digno de vida e de reprodução autônomas para as populações locais, e, no plano ambiental, resta demonstrar, fora honrosas exceções,  que o seu interesse pelo meio ambiente amazônico será mais do que maquiagem  verde. Paradoxalmente, o embate entre interesses contraditórios se reveste de novas estratégias e formas. Vê-se no sul do Pará e na BR 163 protestos populares com fechamento de estradas, ameaças de seqüestros, ocupação e destruição de prédios públicos contra ações  do governo federal que tentam disciplinar a ocupação desordenada da região. De fato, as madeireiras, especialmente, avançam acompanhadas por uma precária mão-de-obra nômade. Ladrões de terra e de florestas, fazendeiros e sojeiros se escondem atrás de trabalhadores desesperados. A chantagem do emprego serve de escudo à grilagem e à indústria da destruição.

No plano político, as bancadas federais (Câmara e Senado) e estaduais representam predominantemente os interesses da minoria que domina as economias, as regionais e a nacional. A sua luta contra o reconhecimento dos direitos indígenas, contra a criação, a manutenção da integridade ou a expansão de terras indígenas, reservas extrativistas e outras unidades de conservação, contra as percentagens de preservação obrigatória das propriedades, contra as exigências de áreas de preservação permanente é tão ferrenha quanto sorrateira. A bancada ruralista, em particular, obra para expandir os domínios do agronegócio no Norte. Importantes setores do governo federal, sob a condução do Ministério da Agricultura, governos estaduais, encabeçados aqui pelo governo do Mato Grosso, sonham em fazer da Amazônia o novo celeiro do mundo. Se os políticos que representam o agronegócio e/ou a economia dos velhos negócios amazônicos (pecuária extensiva, exploração madeireira)  expressam cruamente, sem constrangimento, suas opções, manifestando claramente, até por ignorà-las, seu desprezo para com as populações locais, certos governos estaduais disfarçam melhor enquanto outros desenvolvem ações setoriais voltadas para setores da população local. Nada, todavia, que chegue a configurar o estabelecimento de pactos regionais. 

Seria uma ingenuidade achar que o estágio em que se encontra a democracia brasileira  e a República e o modo como o capital se acumula no país  permitem o estabelecimento de pactos entre setores diametralmente opostos. Sem pretender tanto, forçoso é reconhecer que nem a sociedade amazônica, nem o governo federal lograram constituir na região amazônica um arco de alianças mínimo capaz de dar sustentação a uma política que fosse, ao mesmo tempo, de conservação e uso da biodiversidade amazônica e de resgate e fortalecimento das populações tradicionais, dos pequenos produtores rurais e outros setores populares.

O histórico processo de extermínio da população indígena, de escravidão dos negros, de dependência e subordinação dos extrativistas e de marginalização econômica e social do campesinato amazônico aliado ao isolamento geográfico e à quase impossibilidade desses grupos serem reconhecidos como cidadãos e cidadãs e de exercer a sua cidadania, explicam a dificuldade, até recentes décadas, para se fazerem ouvir pelos setores intelectuais, urbanos e empresariais mais avançados. Quanto ao Estado, replicou no Norte o padrão nordestino de patrimonialismo e de clientelismo, e, quando necessário, do exercício da violência bruta.

Porém, o quadro não é totalmente negativo. O Ministério do Meio Ambiente elaborou planos excelentes para a Amazônia. Temos em especial o Plano Amazônia Sustentável, o de combate ao fogo no arco do desmatamento, o plano de desenvolvimento sustentável da BR 163. O Programa Piloto para a conservação das Florestas Tropicais – PPG7 – terá continuidade a partir de 2007. Terras Indígenas – TI, em especial a T.I. Raposa Terra do Sol, foram homologadas. Reservas Extrativistas – Resex, como a Verde para Sempre, no município de Porto de Moz, Parà, e Projetos de Assentamentos Sustentáveis foram criados. Voltados para os pequenos produtores, tem-se vários programas, entre os quais o Pro-ambiente e o Gestar, no Ministério do Meio Ambiente, crédito e assistência técnica, no Ministério do Desenvolvimento Agrário. A Lei de Gestão de Florestas Públicas, na esperança de pôr fim ao saque dos madeireiros sobre as florestas, visa transformar as florestas públicas em concessões florestais entregues à iniciativa privada.  O Projeto de Lei, ainda em fase final de votação na hora em que este texto está sendo redigido, mantém a preocupação explícita de  assegurar um lugar para as comunidades extrativistas da floresta. O Incra procede ao levantamento exaustivo das terras públicas, sinal de que a desordem fundiária e a grilagem estariam com os dias ou os anos contados.

Vale ressaltar o tratamento dado à BR 163, a rodovia que liga Cuiabá a Santarém. Procurou-se – e conseguiu-se – envolver a sociedade e o poder local na discussão de um projeto de desenvolvimento e conservação para a área de influência da estrada. Ademais, o Ministério do Meio Ambiente conseguiu a participação de vários ministérios, conforme a filosofia pregada pela Ministra Marina Silva – segundo a qual a transversalidade é a condição necessária para verdadeiras políticas ambientais.   Concomitantemente, o governo criou oito Unidades de Conservação no seu entorno e ampliou o Parque Nacional da Amazônia, em iniciativa conjunta com o estado do Pará. O impacto provocado pelos índices de queimadas em 2003/2004 contribuiu, sem dúvida, para que o MMA tivesse força para que fosse tomada essa decisão.

Conviria fazer um melhor e mais completo levantamento das ações e das propostas  governamentais existentes, para não ser injusto para com os numerosos quadros e funcionários que, em muitos ministérios, tentam arrancar a camisa de força na qual foram colocados. Mesmo afirmando aqui que os resultados são poucos e muito setoriais, não devem ser desprezados, pois são sementes, ao lado das lutas da sociedade, para a constituição de um Brasil social e ambientalmente mais justo. De onde vem então essa sensação de que o discurso parece mais bonito do que a realidade e de que as ações desenvolvidas desaparecem dentro de um oceano de problemas?

Não se nega que o governo Lula herdou uma dinâmica destrutiva de ocupação da Amazônia brasileira, uma burocracia em parte corrompida, uma política macroeconômica com a qual não podia romper de imediato. Mas ele tratou de fazer frutificar a herança. O discurso e as práticas do crescimento associados a uma política macroeconômica de estabilidade são duplamente ruinosos para a Amazônia. A política de estabilidade macro-econômica exige uma vigorosa política de exportação, na qual a soja aparece como o carro-chefe, podendo se apresentar com moral como a nova redenção do Brasil e da Amazônia (e, por cima, os rios de dinheiro ganhos nos anos de bonança pelos sojicultores, com os créditos facilitados e rolados sem cerimônia, facilitando a conquista do território). Em compensação, essa política promove uma rígida contenção de despesas públicas, o que impede que recursos públicos sejam dirigidos para a Amazônia e que assim o governo tenha os meios para qualquer ação que contrarie os setores dominantes. Junta-se a isso as promíscuas alianças regionais que o governo federal fez para assegurar uma maioria no Congresso. O recorde de queimadas é a face ambiental do sofrimento de extrativistas e de pequenos produtores que não conseguem viabilizar-se economicamente, de tantos expulsos pela força ou pela persuasão das suas terras, das centenas de milhares de ameaçados e dos assassinados.

Os projetos das barragens e usinas de hidroeletricidade de Belo Monte e do Alto Madeira, a exploração de bauxita de Juruti, a ampliação da capacidade de Tucurui, o anúncio do asfaltamento da BR 163, da BR-319 (Manaus-Porto Velho) e da BR-210 (Humaitá-Lábrea), a abertura da ligação por estrada com o Pacífico, o gasoduto Urucu-Porto Velho, as usinas de ferro-gusa de Marabá e do Maranhão, a soja presente desde já, além da franja sul da Amazônia brasileira, em Rondônia, no Amazonas, no Pará, em Santarém, mas também na margem esquerda do Amazonas, no Amapá e em Roraima, criando uma frente comum com as madeireiras e a pecuária, se sobrepõem e apagam qualquer pretensão de um desenvolvimento próprio para a região, qualquer sinal de uma política ambiental consistente. Todas essas iniciativas são promovidas ou vigorosamente defendidas e apoiadas pelo governo.

As dificuldades para viabilizar as iniciativas socioambientais são enormes. De fato, o Incra, o Ibama, a Funai e a Polícia Federal, todas instituições federais que estão presentes em campo, não conseguem monitorar e fiscalizar as áreas de conservação e as terras públicas e defender os direitos das populações com as quais lidam, no âmbito das suas responsabilidades. Além da corrupção frequentemente denunciada, afeta a sua capacidade de intervenção efetiva a falta de meios financeiros e de  recursos humanos. A impossibilidade, não raras vezes em fazer valer a lei e as suas decisões evidencia a fragilidade do poder federal e do legislativo. A sua ausência ou a sua omissão é interpretada como um sinal de que, de fato, tudo é permitido. A sua cumplicidade, voluntária ou não, com a “bandidagem” reforça os sentimentos de um Estado a serviço dos poderosos e do nivelamento para baixo da política (“todos os políticos se valem”).  Não adiantam operações espalhafatosas como as que foram promovidas em Anapú, Para, e na BR 163, pois é sabido que são fogos de palha. Uma pesquisa do ISA[1] mostra que as multas raramente são pagas. O judiciário, freqüentemente, apesar de ser um guardião vigilante da propriedade privada, ao defender os interesses dos produtores, mesmo que a propriedade seja duvidosa, reforça essa sensação de impunidade. Acompanhamos o caso dos pequenos produtores desintrusados da T.I. Urubu Branco, Mato Grosso, que deveriam ter sido assentados no Assentamento Liberdade, localizado no município de Canabrava. As terras do Assentamento são públicas, sob a responsabilidade do Incra, que não conseguiu até hoje despejar os sojeiros grileiros, amparados pelo Judiciário estadual, e tirar da miséria e do desespero os acampados. A impotência do governo federal é manifesta.

Em compensação, em agosto de 2005, a Justiça Federal do Pará concedeu uma liminar autorizando o despejo  da  Incexil, empresa pertencente ao Grupo C.R. Almeida, localizada na Terra do Meio. Este se dizia proprietário de quase 5 milhões de hectares de terras na região, considerados a maior área grilada do país. Esta decisão veio depois de anos de denúncias, muitas delas que partiram do jornalista Lucio Flávio Pinto, perseguido por causa disso. Ela ressalta por contraste o imobilismo provocado por surpreendentes decisões tomadas no âmbito da Justiça estadual. Na data em que escrevemos, o Ministério Público Federal no estado do Pará e a Polícia Federal planejavam uma operação conjunta para cumprir, no prazo de uma semana, a ação de despejo. Há um detalhe significativo: “A liminar ordena que a Polícia Militar não atue em benefício de Cecílio Almeida, numa resposta direta à presença de policiais militares que fazem segurança para os grileiros na região, conforme divulgado pela imprensa local no fim do ano passado.”[2]

Tem-se a sensação que o governo subestimou totalmente a gravidade da situação de calamidade em que se encontra a Amazônia. O drama vivido por povos indígenas, como os Cinta Larga e os Xavante da Terra Marãiwsatsede, por comunidades rurais, como as do Planalto Santareno, que sumiram do mapa dando lugar à soja, por assentamentos da Reforma Agrária abandonados pelo poder público, o grande incêndio ocorrido em Roraima há poucos anos, e tantos outros dramas humanos e ambientais não serviram de nada. O assassinato da Irmã Dorothy, triste lembrança de que a violência continua imperando, o crescimento assustador do desmatamento, em particular no Mato Grosso, o incêndio do Acre, a seca dos rios e a fome dos ribeirinhos talvez consigam inquietar a sociedade e despertar de vez um governo cujo núcleo central desconhece a Amazônia.

A principal ação em curso para tentar salvar a floresta amazônica brasileira é a proposta de gestão de florestas públicas. Embora seus idealizadores argumentem que não se trata de privatização das florestas públicas, mas sim de concessões, e que as comunidades locais terão prioridade na sua exploração, a Lei se inscreve na linha defendida por economistas ambientais: “o mercado vai cuidar melhor do que lhe interessa do que o Estado. O que é comum não é bem conservado”. A aposta do governo é que essa lei deslocará os madeireiros da exploração ilegal e predatória para uma exploração legal e sustentável e que a convivência é possível entre as empresas e as comunidades florestais. Se valeu essa terrível confissão da impossibilidade do Estado em cuidar do bem público, a história dirá. Seria uma novidade, pois o avanço da soja mostra que os produtores (que plantam em propriedades legais e em terras griladas) e o agronegócio (tal essa empresa de esmagamento que usa carvão vegetal do Cerrado para suas caldeiras) misturam sem crise de consciência o legal e o ilegal e que têm uma pretensão à hegemonia. Varrem do mapa as outras alternativas produtivas e as populações locais  onde decidem se implantar.

Sobra o sonho ou a última esperança: a cidade. Haja Fome Zero, polícia e presídios para dar conta do inchaço urbano, nas capitais, nas enormes aglomerações deixadas pelos grandes projetos amazônicos, nas cidades que crescem e vegetam no rastro da exploração madeireira e da abertura das estradas, nas cidades que acolhem hoje os expulsos pelo novo ciclo dos grãos e da pecuária moderna e, amanhã, os refugiados da destruição de grandeza amazônica por vir.

Esse cenário ainda não é inexorável, pois omite a resistência de milhares de pessoas e famílias, que se expressam numa gama impressionante de experiências, alternativas, projetos para construir uma Amazônia Sustentável e Democrática. Sofrem violências e ameaças, mas não como vítimas. É porque eles e elas incomodam o odioso projeto das classes dominantes de perpetuar seu domínio e a desigualdade que nos torna campões do mundo nesse quesito.

 

 


* Não está abordada neste texto a grave questão ambiental urbana. 

** Jean-Pierre Leroy, Educador e Coordenador executivo do Projeto Brasil Sustentável e Democrático/Fase

[1] Fonte: ISA- Instituto Socioambiental
Link: http://www.socioambiental.org/website/index.cfm

[2] Fonte: Radiobrás 06/09
Link: http://www.radiobras.gov.br/