As mobilizações populares que ocorrem no Oriente Médio marcam uma nova etapa na conjuntura internacional. Seu caráter inesperado surpreende as expectativas tanto de setores conservadores quanto da própria esquerda. Por essa razão, é preciso evitar basear nossas análises somente em experiências conhecidas, pois parece que ainda haverá muita novidade nesse cenário.
Após a segunda guerra mundial, a divisão geopolítica da região pelas grandes potências teve como critério assegurar o fornecimento de petróleo para a Europa e os Estados Unidos, o que ocorreu através do apoio a governos totalitários. Portanto, é óbvio que o discurso pró-democracia utilizado agora para justificar as ameaças da OTAN é pura propaganda. Outros elementos relevantes naquele período, caracterizado por David Harvey como “novo imperialismo”, foram a supremacia dos Estados Unidos sobre a Inglaterra como principal potência mundial e o início da Guerra Fria.
No final dos anos 80, a crise econômica que arruinou a União Soviética anunciava também uma crise na capacidade de valorização do capital em nível mundial. O modelo soviético de Estado planejando não foi capaz de suportar o que Marx chamou de “mecanismos coercivos da concorrência” que atenuam a irracionalidade do capital por considerarem, em certa medida, o valor de uso das mercadorias. Sem abdicar da forma-mercadoria e da exploração de mais-valia, porém sem a capacidade de manter uma economia de mercado, o Estado soviético não suportou a concorrência internacional. Os enormes gastos com armamentos, ou seja, com capital improdutivo, colaboraram com a falência da economia soviética.
O que foi interpretado como uma vitória do capitalismo sobre o socialismo marcava, na verdade, o início de uma crise econômica nos Estados Unidos. Utilizando a fórmula clássica da guerra e do inimigo externo para desviar a atenção dos problemas econômicos internos, Bush-pai inventou a chamada Operação Tempestade no Deserto. Os sucessivos ataques militares ao Iraque e ao Afeganistão marcaram a política estadunidense até hoje, porém a guerra já não parece mais uma saída eficaz para a crise. Pelo contrário, é bastante improvável que a OTAN venha a se aventurar atualmente em uma intervenção na Líbia.
Essa hipótese se baseia de dois motivos. Primeiro, há vários anos que Kadafi deixou de ser tratado com hostilidade pelos Estados Unidos e União Européia. Seu filho, inclusive, é considerado “queridinho” da elite freqüentadora do Fórum Econômico de Davos. Outra razão é a acentuação da crise nos países centrais do capitalismo, que já não suportariam arcar com a alternativa militar. A União Européia já descartou a possibilidade de apoiar uma ação da OTAN na Líbia. Os Estados Unidos podem até ensaiar algumas manobras militares na região, mas ainda estão atolados no Iraque e Afeganistão, sem muita margem de manobra. O que presenciamos é uma enorme guerra de propaganda midiática. De um lado, o governo americano como “paladino da democracia”. De outro, Kadafi fazendo jogo de cena antiimperialista.
A novidade que vale a pena observar é a ascensão de movimentos populares que lutam por autodeterminação em torno da bandeira pan-árabe. Na Turquia e no Egito essas mobilizações tiveram início em 2005 com uma aliança entre setores estudantis e sindicatos, que organizaram dezenas de greves. Muitas lideranças foram presas, mas o movimento ganhou força e culminou com as revoluções recentes. Na Líbia, a oposição a Kadafi tampouco é pró-ocidental. Mesmo na Arábia Saudita, sob o regime absolutista favorito dos Estados Unidos, os protestos continuam.
Essa conjuntura representa um impasse, pois agora é o próprio povo árabe que coloca tanto seus governos quanto as potências mundiais em cheque. Cai a máscara, tanto da “luta contra o terrorismo” dos Estados Unidos quanto do absolutismo árabe pró-imperialista que, inclusive, tem adotado uma posição cúmplice em relação às atrocidades cometidas pelo governo de Israel contra os palestinos. A única conclusão possível nesse momento é que há possibilidade de se abrirem novos horizontes na geopolítica mundial. Certamente, estamos longe de chegar a um desfecho nessa história. Aguardemos os próximos capítulos.
- Maria Luisa Mendonça é jornalista e coordenadora da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos.